Há 53 anos que António Feliciano, hoje com 77, leva o cinema de terra em terra. Este mês, quatro aldeias do interior do concelho de Odemira, distrito de Beja, recebem o projecionista ambulante para sessões gratuitas e a primeira é Luzianes-gare, onde vivem cerca de 350 pessoas.

Uma parede branca ao fundo de um palco, para onde aponta um projetor estrategicamente colocado no centro do salão, e cadeiras de madeira, que abandonam a posição de descanso, encostadas às paredes, para se alinharem em frente "à tela", são o bastante para converter o Centro Social de Luzianes-gare, mais habituado a receber bailes, numa sala de cinema.

Não há pipocas, nem o conforto das poltronas acolchoadas das salas de cinema mais modernas. Mas isso até nem é o mais importante. Ir ao cinema acaba por ser uma forma de "convívio" fora de casa e também de (re)ver o "amigo António".

"Quando o António vem aqui, aproveito sempre para vir, caso contrário, para abalar daqui para Odemira, o transporte não presta e é longe", diz José Martins António, de 79 anos. Apesar de, como alguns vizinhos, até nem saber qual é o filme que está prestes a passar no "grande ecrã" improvisado, não perde uma das raras sessões de cinema na aldeia.

Adélia Mestre, de 74 anos, trocou o serão em casa, a ver televisão ou a fazer renda, para ir ver o filme, na esperança que "seja para rir" e que "seja português", porque "ler as legendas já é mais difícil".

Desta vez, embora seja uma comédia, o filme é uma produção norte-americana, "O Santo Vizinho". Ainda assim, Adélia Mestre fica a ouvir a introdução de António Feliciano sobre o filme que está prestes a projetar.

"Boa noite a todos, obrigado por terem vindo ao cinema", diz, para começar a falar sobre a comédia realizada por Theodore Melfi, com os atores Bill Murray, Melissa McCarthy e Naomi Watts.

Antes do início da sessão, não passam trailers de outras produções cinematográficas e não há pedidos de silêncio, nem para desligar os telemóveis. A plateia, com mais de quarenta pessoas, entre crianças acompanhadas pelos pais, jovens e seniores, fica atenta.

Estas introduções "são habituais" neste tipo de sessões, explica à agência Lusa António Feliciano, que faz sempre um enquadramento dos filmes que está prestes a apresentar ao público, desde os primeiros tempos em que começou a levar o cinema às aldeias, há mais de 50 anos.

Um estábulo de um burro, na Zambujeira do Mar, ou uma fábrica de cortiça, em Luzianes-gare, e até a rua foram das primeiras "salas" a receber a projeção de filmes levados pelo cinema ambulante de António Feliciano, onde as paredes caiadas de branco ou os lençóis serviam de tela.

"Uma fábrica de cortiça tinha paredes negras de taipa, desviavam-se uns fardos de cortiça, punha-se um lençol e alguns metiam pranchas de cortiça empilhadas para se sentarem", recorda, lembrando que, nessa época, tinha de levar um projetor com algumas dezenas de quilos e um gerador, porque "não havia eletricidade".

Apaixonado pelo cinema desde a infância, António Feliciano construiu em Saboia, onde cresceu, um cinema, num edifício que hoje tem outras funções. No entanto, não desistiu do sonho e criou o Cinema Girasol, em Vila Nova de Milfontes, que serviu recentemente de inspiração para uma música dos Azeitonas e um videoclip com argumento de Nuno Markl.

Já se referiram a ele como "o último projecionista ambulante do país", mas António Feliciano prefere não assumir "o título". "Embora não conheça mais ninguém que faça este trabalho atualmente, não tenho a certeza se sou o único", justifica, com humildade.

Continua a levar o cinema a pequenas localidades e, em parceria com o município de Odemira, que desde setembro de 2015, já promoveu 18 sessões de cinema em várias localidades do concelho. As próximas estão agendadas para segunda-feira, em Bicos, e para quarta-feira, em Santa Clara-a-Velha, sempre às 21:30.