E a política chegou em força a Cannes.
A equipa do filme brasileiro "Aquarius", liderada pelo realizador Kleber Mendonça Filho e pela atriz Sônia Braga, protestou na terça-feira ao fim da tarde na passadeira vermelha de Cannes contra o "golpe de Estado no Brasil".
"Um golpe ocorreu no Brasil", "Resistiremos" e "Brasil não é mais uma democracia" foram alguns dos cartazes, escritos em diversos idiomas, que o cineasta e a sua equipa, além da produtora francesa do filme, Emilie Lesclaux, seguraram na famosa escadaria do Palácio de Festivais. Fotografias com todos e a atriz Sônia Braga no cimo a saudar no topo estão a correr mundo.
Dilma Rousseff já agradeceu no Twitter ao “talento do Brasil em Cannes”.
Na sala do Grande Teatro Lumière, o filme recebeu uma prolongada ovação após sua exibição. Os críticos consideram que até agora é o melhor apresentado na mostra de competição.
Na sala de exibição, o grupo voltou a manifestar-se ao grito de "Fora!", enquanto outras pessoas seguravam uma faixa com a frase: "Stop coup in Brazil" [Detenham o golpe no Brasil].
Um dos presentes abriu a sua camisa para deixar à mostra uma t-shirt com a inscrição "Super Dilma", em referência à presidente Dilma Rousseff, afastada este mês do seu cargo no âmbito da abertura de um julgamento de 'impeachment', denunciado por ela como um "golpe de Estado".
Minutos depois começou a projeção de "Aquarius", o único filme da América Latina entre os 21 aspirantes à Palma de Ouro, que conta a história de Clara (Sônia Braga), uma mulher que resiste a pressões de promotores imobiliários para deixar o seu apartamento no Recife.
Vários cineastas brasileiros presentes em Cannes criticaram o "golpe de Estado" de Michel Temer, que assumiu a presidência após a abertura do julgamento de 'impeachment de Dilma', e a sua decisão de acabar com o ministério da Cultura, integrando-o ao da Educação.
Um país dividido
Mendonça Filho reencontrou em Cannes a atriz do seu filme, Sônia Braga, que mora em Nova Iorque e que não via desde o fim da rodagem na capital pernambucana. Ambos falaram sobre os últimos acontecimentos no Brasil.
"Moro nos Estados Unidos, mas também no Brasil, tenho família e amigos lá e penso que o que está a acontecer, a manipulação da tomada do poder, tem que ser exposto ao mundo inteiro", afirmou Sônia Braga à AFP.
"Uma das coisas que mais me preocupa é como o Brasil está dividido. Nunca tinha visto o meu país tão dividido", acrescentou.
De acordo com a estrela, de 65 anos, "tudo o que se fez desde o fim da ditadura, desde a abertura do Brasil, fizemos juntos. Temos que entender que em dois anos, de qualquer forma, vamos votar para presidente. Temos que voltar a fazer as coisas juntos".
O realizador Eryk Rocha apresentou em Cannes "Cinema Novo", um documentário poético sobre o movimento cinematográfico, um dos mais importantes da América Latina e que revolucionou a criação artística nos anos 1960 e 1970.
"O Brasil está a entrar num novo momento, extremamente grave e de incerteza. Como cidadão, sinto uma profunda impotência e angústia com o que está a acontecer: o Brasil está a viver uma rutura muito grave no processo democrático", disse.
Outras vozes
O cineasta criticou em particular o fim do ministério da Cultura. "É um reflexo do grande retrocesso que está a acontecer no Brasil", afirmou.
"Há dois erros gravíssimos. O primeiro é desarticular um ministério da Cultura que em todos os países do mundo - como na França - é um eixo fundamental do desenvolvimento. O outro é desarticular o da Educação", disse.
"É necessário reconstruir esta ideia da união para transformar o mundo", disse o cineasta, que fez questão de afirmar não ser "nem lulista nem petista", e sim um "artista independente".
"O cinema pode criar outra voz, outros olhares e outra perceção da realidade, do que está a acontecer", disse.
Isabel Penoni e Valentina Homem são duas jovens realizadoras brasileiras que começaram a fazer cinema nos últimos anos.
Em Cannes elas apresentaram, na mostra Quinzena dos Realizadores, o curta-metragem "Abigail", sobre a viúva do antropólogo Francisco Meireles, conhecido pelo seu trabalho com as comunidades indígenas nos anos 1940 e 50.
A visão de ambas sobre o que está a acontecer no Brasil também é muito crítica.
"Do ponto de vista de quem faz cinema e quem trabalha com arte é terrível, porque se tinham conquistado algumas coisas graças às políticas de cultura, sobretudo com o governo Lula, que democratizou a cultura. Agora a tendência é ter muito menos investimento regular na produção", disse Penoni.
Valentina Homem observou que quase todos os filmes brasileiros exibidos em Cannes este ano - incluindo o próprio, o de Kleber Mendonça Filho, o de Eryk Rocha, assim como a curta aplaudida na Semana da Crítica "O Delírio é a Redenção dos Aflitos", de Fellipe Fernandes - foram produzidos em grande parte com dinheiro público canalizado por iniciativas dos governos anteriores.
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