O Seminário Internacional de Cinema Documental Doc’s Kingdom realiza-se em Arcos de Valdevez, na Casa das Artes, entre os dias 3 e 8 de setembro e reúne profissionais de vários países.

O tema é “Emergir no Conflito”, com uma seleção de filmes secreta, uma aposta na convivência entre realizadores, expositores e público e um programa que pressupõe cinco dias de imersão entre debates e sessões. Na organização está a Apordoc, a instituição responsável pelo DocLisboa, com o apoio do ICA e da Câmara de Arcos de Valdevez.

Dois dos diretores do evento, Filipa César e Nuno Lisboa, explicam ao SAPO Mag as singularidades e os objetivos da proposta.

A base do vosso trabalho é a dinâmica de grupo, onde o próprio programa é secreto e pode sofrer alterações mediante a participação dos envolvidos. Quais as principais vantagens deste tipo de abordagem?

NUNO LISBOA: "O Doc’s Kingdom é uma alternativa à experiência urbana, excessiva e sobre-informada do festival de cinema: ao exibir menos filmes, cuidadosamente programados, entre um mesmo grupo de pessoas que se retiram momentaneamente para longe das suas rotinas quotidianas, apostamos numa experiência de imersão total que só pode ser o resultado daquilo que os participantes determinarem. E, a partir do momento em que o seminário começa, são todos participantes, não apenas espectadores, convidados ou organizadores.
Quem se inscreve e participa no Doc’s Kingdom sabe que tem uma oportunidade única de passar uma semana com grandes cineastas de diferentes gerações, numa atmosfera intimista e acolhedora. O segredo do programa, ou antes, a surpresa das sessões, procura intensificar, ampliar e amplificar a experiência na sala de cinema: não sabendo o que esperar, o espectador não deixa de antecipar. Por um lado, está completamente disponível para os efeitos da máquina de memória que é o cinema e, por outro, trabalha ativamente para produzir um sentido entre os fragmentos de realidade que tem em mãos.
Em contraponto com o silêncio da sala de cinema, a sala de debates é um espaço de partilha e troca de ideias. Os debates, na presença dos cineastas convidados e realizados numa sala específica para o efeito, diferente da sala de projeção, constituem um núcleo fundamental do seminário e procuram ser mais do que sessões de perguntas óbvias e respostas conclusivas. Neste sentido, o tema do seminário é sempre e apenas um ponto de partida, nunca um ponto de chegada, talvez e só um ponto de encontro: entre os filmes e entre as pessoas que, durante uma semana, vão produzir a sua própria memória coletiva, através do cinema como ferramenta para pensar e agir no mundo presente. Ao saírem de Arcos de Valdevez, regressam às suas vidas com inspiração e compromissos novos.

FILIPA CÉSAR: A ideia de convidar vários grupos de artistas e cineastas que produzem cinema coletivamente veio de uma vontade de sublinhar ou reclamar a dimensão coletiva, colaborativa e múltipla [de multidão] intrínseca na prática cinematográfica. Queríamos desviar a ideia de um cinema de autor focado no indivíduo e no génio para realçar a dimensão coletiva, afetiva, sensorial e múltipla do cinema que nos parece o melhor campo para abordar os temas deste seminário.

O documentário é um das vertentes do cinema mais exploradas em Portugal. Por que acham que isso acontecem e como posicionam o cinema feito cá no panorama mundial?

NUNO LISBOA: Mais do que a importância, real e presente, do documentário como género cinematográfico em Portugal e no mundo, existe uma cultura documental do cinema português que se encontra presente em todos os melhores filmes produzidos no país, incluindo de ficção. Não estamos particularmente interessados nas velhas divisões binárias entre o documentário e a ficção, como em nenhumas outras prisões de género. Reconhecemos que o cinema documental atravessa todo o cinema português e faz parte do seu “estilo”: na sua “Introdução a uma Verdadeira História do Cinema e da Televisão”, Jean-Luc Godard define o estilo como aquilo que resulta da “diferença entre o que se pode e o que se quer.”

Qual a ideia presente no título, "Emergir no Conflito"?

FILIPA CÉSAR: Idealmente, títulos são significantes com a possibilidade de múltiplos significados. O que posso revelar são elementos do diálogo com Olivier Marboeuf e Nuno Lisboa para chegarmos a "emergir no conflito”. Podemos dizer que o título propõe um espaço cinemático, sensorial e discursivo entre as duas palavras que o seminário quer proporcionar.
Este espaço é informado por múltiplos autores e artistas. "Emergir" e "Conflito" são os parênteses para criar este espaço: por um lado "Emergir" convoca o livro “The Black Atlantic” (1993), de Paul Gilroy, e "Conflito" o último livro de Donna Haraway - “Staying with the Trouble” (2016).
Portanto, o primeiro indica-nos talvez um campo de abordagem que, no contexto português, seria uma proposta de contra-história das Descobertas, o Atlântico como narrativa, como agência, Atlântico "prosopormorfico" - uma forma que tem prosa e narrativa próprias. Ou o Atlântico pela perspetiva dos humanos atirados ao mar durante o tráfico de escravos. Portanto, uma contra-abordagem aos “Descobrimentos”. O segundo, como criar espaços onde possamos convocar conflitos, habitar o conflito, habitar aquilo que põe em causa questões epistemológicas estruturantes daquilo que pensamos ser a nossa cultura, a nossa forma de pensar, a nossa ética. Como criar um espaço de “desaprendizagem” sem o assolamento petrificante do medo.
Emergir no conflito, ou habitar o conflito é uma tentativa de pôr em ação instrumentos de pensamento que Donna Haraway propõe: "aprender a ser verdadeiramente presente, não como um pivô de fuga entre passados horríveis ou perfeitos, e futuros apocalípticos ou salvíficos, mas como seres éticos entrelaçados em múltiplas configurações inacabadas de lugares, tempos, matérias e significados.”

NUNO LISBOA: O programa deste ano relaciona diferentes práticas artísticas e cinematográficas que abordam o conflito enquanto tema intergeracional, incluindo a projeção de clássicos como “Bless Their Little Hearts”, de Billy Woodberry, e “Born in Flames”, de Lizzy Borden, ambos de 1983, ou “O Regresso de Amílcar Cabral” (1976), de Sana na N´Hada, tal como os últimos filmes dos jovens cineastas Louis Henderson, James N. Kienitz Wilkins e do colectivo Inhabitants [Mariana Silva e Pedro Neves Marques], todos inéditos e, alguns, mostrados ainda nas suas versões de trabalho.