"Aquarius", um filme brasileiro que esteve na secção de competição à Palma de Ouro em Cannes e recentemente estreado no Brasil, transformou-se num símbolo da resistência do mundo artístico do país ao governo conservador de Michel Temer.
A polémica começou no festival francês em maio, quando na passadeira vermelha da maior montra do do cinema internacional, o realizador Kleber Mendonça Filho e o seu elenco, que inclui a estrela Sônia Braga, levantaram cartazes que denunciavam "um golpe de Estado" no Brasil.
No outro lado do oceano, a então presidente Dilma Rousseff acabava de ser afastada pelo Senado, à espera do julgamento de destituição que chegou ao fim na semana passada.
A longa-metragem estreou no Brasil a 1 de setembro, exatamente um dia após a votação que ditou o 'impeachment' e transformou-se num símbolo do descontentamento da esquerda intelectual, que tem esgotado as salas de cinema e acompanha as projeções com aplausos e gritos de "Fora Temer!".
A chegada a Portugal está marcada para 12 de janeiro do próximo ano.
'Coincidência paranormal'
Sem tratar diretamente a crise, o filme 'acaba por ser muito político', disse Kleber Mendonça Filho em entrevista à AFP.
Sônia Braga interpreta a Clara, uma jornalista aposentada que se nega a abandonar o seu apartamento à frente da praia no Recife, apesar das pressões de uma construtora que quer substituir o edifício por um complexo imobiliário de luxo.
É uma 'coincidência paranormal' com a trama política do Brasil, afirmou o realizador.
'A história do filme pode ser vista como a história de Dilma, algo que francamente nunca planeei: uma mulher que está a ser desalojada de forma injusta. Existem por trás poderes que querem que ela saia", afirmou Mendonça Filho.
Nos primeiros quatro dias de exibição, o filme teve 55.000 espectadores, um número significativo para uma produção nacional, e está entre as 16 longas-metragens brasileiras que aspiram representar o país na competição pelo Óscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Outras polémicas, como a classificação do filme somente 'para maiores de 18 anos', posteriormente alterada para maiores de 16, e sobre os membros da comissão que escolherá o representante para o Óscar, que inclui uma personalidade que apelou ao boicote do filme depois da ação da equipa em Cannes, colocaram o trabalho de Kleber ainda mais em destaque no atual contexto político.
Chico Buarque, Caetano Veloso e 'Fora Temer!'
Desde que Michel Temer assumiu o comando do Brasil, ainda como presidente interino, empreendeu uma série de reformas que geraram rejeição nos setores de esquerda e em grande parte da classe artística, como a extinção do Ministério da Cultura, uma decisão que depois de muitos protestos e ocupações foi revertida.
Artistas como Caetano Veloso e Chico Buarque juntaram-se a essa oposição: Caetano Veloso publicou uma foto nas redes sociais com um cartaz que dizia "Fora Temer" antes de subir ao palco da abertura dos Jogos Olímpicos em agosto, e nos seus espetáculos na Europa o público tem cantado palavras de ordem contra o novo presidente.
Chico, por sua vez, acompanhou o ex-presidente Lula na tribuna de honra durante a matatona que foi a sessão em que Dilma Rousseff se defendeu no Senado, já na etapa final do seu julgamento.
'Os agentes da cultura são como uma caixa de ressonância, como um espaço privilegiado de reflexão sobre as principais questões nacionais', disse à AFP Edson Farias, professor de Sociologia da Universidade de Brasília.
Entretanto, Farias acredita que o alcance das manifestações desses grupos de elite na sociedade brasileira ainda é bem limitada.
'Essas atitudes, seja a de Chico ou do elenco do filme "Aquarius", indicam um prestígio que ainda existe entre os artistas, mas a possibilidade de ter ressonância dentro dos círculos de poder legislativos, judiciário e do governo brasileiro ainda é distante", avançou.
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