E se Portugal se transformasse na Melanésia e, em vez dos piropos habituais, as interessadas no vizinho ao lado dissessem coisas como “as inundações das terras baixas da Papua Nova Guiné sempre me fascinaram”?

É certamente um enfoque mais leve e um humor particular que traz João Nicolau ao cinema de autor português, normalmente mais dramático e carrancudo, com “John From”, que estreou comercialmente esta quinta-feira.

O realizador, já premiado em Cannes com a sua última curta-metragem (“Gambozinos”) e selecionado para Veneza pela sua primeira longa (“A Espada e a Rosa”), conta aqui a história das amigas inseparáveis Rita (Júlia Palha) e Sara (Clara Riedenstein). Adolescentes, tomam banhos de sol, vão a festas e vivem as férias de forma pachorrenta, até que Rita “decide” se apaixonar por um homem mais velho que vai morar no seu prédio…

Nesta conversa com o SAPO MAG, João Nicolau, para além dos temas do filme e do novo projeto (que tem o título provisório de “Tecno Boss”), falou sobre o complexo trabalho de 'casting' – e da escolha de uma muita jovem protagonista que nem queria entrar no filme para “não estragar as férias”…


SAPO MAG: Traz uma certa leveza ao cinema de autor português, isto caso considere que faz parte desse “segmento”…

Bom, é difícil ser juiz em própria causa. Faço parte porque realizo filmes aqui, mas não sei dizer… O que posso afirmar é que neste filme e no anterior tentei abordar protagonistas que procuram mais transformar as regras pelas quais vêm o mundo, enquanto nos meus primeiros trabalhos eles começavam com estas regras já criadas.

Falando em transformação, no filme anterior centrava-se em crianças, agora em adolescentes, e em ambos os sons e os ambientes naturais intervinham na história…

Por acaso é curioso que fale nisto da intromissão da natureza. Não tinha me dado conta, não tinha pensado na ponte entre estes dois filmes por este lado. É verdade que há esta vontade de transformação só das regras sob as quais os personagens vivem dentro do filme, mas também há a mudança dentro deles próprios. Apesar de falarmos em infância e adolescência, não se limita a isto. O próximo filme será sobre um homem de 65 anos que está em transformação porque vai deixar de trabalhar.

Mas, sim, se calhar agora é isso que está mais no cerne destes filmes. Obviamente que depois gosto de jogar com todos os elementos disponíveis e neste caso me interessou que os 'decórs', o bairro, não fossem apenas 'decórs', mas personagens também. Manifesta-se, transforma-se, implica muitas mudanças nos personagens. Nesta caso é como no “Gambozinos”, onde o próprio título refere-se à natureza – que é onde o filme começa e termina.

Joga muito com o elemento exterior a invadir a história… No caso do “John From” há uma abordagem naturalista do quotidiano adolescente a dialogar com elementos surreais…

O facto de me interessar mais pela transformação permitiu que esse filme, ao contrário dos outros, comece num registo quase naturalista – já a partir do linguajar, com as miúdas a expressarem-se como fazem normalmente. Ao longo do filme os diálogos vão ficando mais escassos, mais duros, a aproximar-se mais de um relato mítico. Isso de facto está ligado a este movimento de transformação que há no filme.

Agora se esse movimento vem do exterior ou do interior é algo que o filme propõe ao espectador e tenta envolvê-lo. Obviamente vem tudo a partir do momento em que ela “se decide apaixonar” pelo fotógrafo. E é porque ele apresenta aquela exposição que a Melanésia surge, se a exposição fosse sobre aeroportos ela saberia tudo sobre aeroportos…

E tal como na expressão “John from”, segundo o sentido que explica no filme, ela tem uma crença “mística” de que algo vai cair do céu e transformar a sua vida… Há a cena da janela, do carro desaparecido…

Exatamente, são manifestações do bairro, não um fantasma, mas uma presença que há ali, que vai permitir isso. Claro que isso tem uma equivalência muito concreta, é um vizinho que se mudou e pelo qual ela 'decide' apaixonar-se. Obviamente as caixas que caem do céu são também fruto da generosidade dela, ela não descansa enquanto a Sara não tenha um namorado também. Esse jogo eu e a Mariana Ricardo, coargumentista, descobrimos ao explorar esse culto [John From], que existe de facto.

Também acaba por transmitir uma visão afetuosa da adolescência…

A mim interessou-me. tal como na infância no caso dos “Gambozinos”, situar a adolescência como um tempo presente, isto é, não necessariamente como um 'requiem' meu por este tempo…

Evita uma visão nostálgica…

Exatamente. Quem faz os filmes são adultos e por isso quase só o tempo adulto é tratado como tempo presente. Neste filme não quis mostrar a adolescência como vinda de um outro lugar…

O registo naturalista sobre o qual falamos implica num trabalho muito voltado para a direção de atores. Como foi a escolha das atrizes?

Isso foi curioso. Nós fizemos um 'casting' em que vimos praticamente 90 raparigas. É importante dizer que não estava fechada a idade, apenas queria ambientar a história na adolescência para me desembaraçar de tudo o que fosse acessório, ter uma personagem que só se preocupasse com aquele momento de paixão. Por isso é passado nas férias, para elas não terem aulas, e tinham que viver na casa dos pais, para não se preocupar com teto ou comida. Da mesma forma, não há qualquer referência a nenhuma realidade social ou politica no filme.

Que idade elas tinham?

A Júlia tinha 15 anos e a Clara 13. Claro que se fosse mais velha teria adaptado mais algumas coisas. Foi uma experiência incrível estar em contato com essa a geração da qual me vou afastando, serviu muito para a própria pesquisa para o filme.

E fizemos em três fases, a primeira foi só uma conversa. Mesmos os profissionais são pessoas também e isso é muito importante para mim no meu método de trabalho. Então, essa primeira conversa foi só para conhecer e, naturalmente, ouvir a voz e ver a imagem delas, pois o cinema vive disso.

Não pedi para representarem nada, queria saber as suas expectativas. Perguntava, por exemplo, o que elas queriam fazer no futuro. A maioria dizia que queria ser cantora ou atriz e a Júlia disse queria ir para gestão e marketing pois tinha muitos primos e achava que tinha jeito para mandar neles. E achei isso muito interessante.

Como foi nas fases seguintes?

Na segunda fase já não ficaram todas e pedi-lhes para ensaiarem cenas com amigas. Para não se sentirem constrangidas, faziam duas cenas e vinham mostrar-me. Isso permitiu descobrir coisas nos jogos delas que se fosse eu a dirigir não teriam acontecido, foram propostas mesmo delas. A terceira fase foram já pares que fiz porque escolhi muito em função uma da outra e aí a Júlia e a Clara impuseram-se.

A Júlia Palha certa vez disse que esteve para recusar entrar no filme porque isso lhe iria estragar as férias…

Sim, isso é verídico. Houve um mal-entendido, ela foi lá três vezes porque pensou que eram duas semanas de filmagem, mas na verdade eram dois meses. E ela obviamente não queria abdicar das férias. Ocorreu que achei ela e a Clara eram tão mais interessantes que os outros pares que tinha visto que não quis mesmo desistir.

E a Júlia não queria abdicar das férias porque é uma rapariga séria que estuda o tempo todo e estava a sonhar com aqueles 15 dias Algarve com a família e os amigos. Eu tentava fazer de advogado do diabo a dizer que férias há muitas mas claro que, com 15 anos, não é bem assim. Felizmente chegou-se a um acordo e pudemos parar a rodagem para ela ir de férias pelo menos uma semana e meia.

Foi uma construção coletiva com as atrizes…

Sim, muito foi trazido pelas atrizes que, como miúdas, não são de todo como as suas personagens, é uma construção. Os ensaios são a parte que mais gozo me dão na fabricação do filme. Faço como no teatro, não digo onde está a câmara. E neste caso foi fácil porque são lugares públicos, são ruas. Era muito importante que elas se preparassem para a rodagem, até por que não são atrizes profissionais – e era preciso muito confiança, o que elas tinham de sobra, para depois desfrutar e descobrir coisas quando se filma. Aqui a maior parte do mérito é delas.

Acha que é um filme para um público essencialmente adulto ou os mais jovens podem de alguma forma rever-se nas liberdades que a história vai tomando?

Já tive experiências com audiências jovens e fiquei muito feliz por perceber que há um interesse genuíno da parte desse público em não ver apenas os filmes adolescentes comerciais americanos que nos chegam. Quando preparei e rodei o filme falei com a Júlia e com a Clara e elas perceberam muito rapidamente que este filme, apesar de ser com adolescentes, não era necessariamente para eles. É claro que um adulto tirará do filme coisas que um jovem não conseguirá, mas o contrário também é verdadeiro.

 Acha?

Sim, já tive essa experiência em Sevilha e no México e foi muito gratificante. Por isso posso dizer que não é estanque e só posso convidar o público jovem para assistir.

Mencionou antes o seu novo projeto…

Sim, tem o título provisório de “Techno Boss” e é sobre um senhor que trabalha com sistemas de cancelas, botões de ponte, terminais de segurança, esse tipo de coisas. Ele é um representante comercial que anda por Portugal de carro a tentar vender as suas maquinetas para uma pequena empresa para a qual trabalha. Ele está no final da vida ativa, a alguns meses de se reformar. É uma tragicomédia, com muitos enganos e cenas rocambolescas.

De certa forma os seus filmes têm algo disto…

Mas este tem mais do que os outros, será algo a lembrar Beaumarchais… E assumidamente musical - terá 12 números.

Por acaso não mencionei isso, a importância da música nos seus filmes.

“John From”, curiosamente, é o que tem menos música tocada pelos atores, mas é o filme onde ela tem mais papéis diferentes ao longo do seu desenrolar. No próximo, quero abordar um pouco mais a ideia do musical clássico, ver como hoje em dia é possível fazer esse tipo de filme.

Trailer "John From".

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