Esta «espécie de experimento» – nas palavras do artista plástico brasileiro – foi documentada em
«Lixo Extraordinário», nomeado para os últimos Óscares e que estreia nesta quinta-feira em Portugal.

Utilizando o material que os catadores recolhem entre as oito toneladas de lixo despejadas diariamente no aterro Jardim Gramacho, o artista acompanhou durante dois anos – fotografando e trabalhando as fotografias – seis dos milhares de trabalhadores naquela que é considerada a maior lixeira a céu aberto do mundo.

Em entrevista à Lusa antes da antestreia do filme, terça-feira, na abertura do
FESTin - Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, a decorrer no Cinema São Jorge, em Lisboa,
Vik Muniz resumiu o que aprendeu com o projecto: «existe muito dinheiro no lixo» e «cada saco do lixo conta uma história». No documentário, os catadores deitam-se a adivinhar a quem terá pertencido o conteúdo que vai sendo despejado a seus pés.

Muniz contratou os catadores como modelos, eles posaram para as suas fotografias e depois trabalharam-nas, sob a sua supervisão, como melhor sabem: juntando-lhes o material que respigam todos os dias, 16 horas por dia. O artista quis mostrar a complexidade de quem trabalha e vive no aterro de Gramacho, onde «tem gente que vê livro, tem gente que vê papel», como diz Tião Santos, um dos catadores e líder da cooperativa local, enquanto partilha, no documentário, o que aprendeu com o Maquiavel retirado do lixo.

Estas pessoas – «que vivem do outro lado da sociedade de consumo» – mostraram ao artista «que uma sociedade não se define simplesmente pelo que é capaz de produzir ou consumir, mas pelo que joga fora, pelo que deixa para trás, [já que] aquilo que a gente parece não querer nos define também».

Muniz, que vive entre Rio e Nova Iorque, acredita que toda a gente consegue sentir a arte, ainda que não a entenda. E quis questionar a definição de beleza, já que o lixo é «um material que não é feito para fazer arte», porque todos acham «repugnante». Actualmente, «a arte contemporânea sofre uma grande crise de relevância», a que Muniz chama de «síndroma da loira burra», que é «a impressão de que uma coisa para ser inteligente não pode ser bonita».

As pessoas documentadas no filme – que nunca tinham ido a um museu e eram «completamente alheias ao conceito de arte contemporânea» – foram momentaneamente transportadas para outro mundo, do qual tiveram de sair após o fim do projecto. Às críticas de insensibilidade social ou frustração de expectativas, Muniz responde: «Venho de uma família muito pobre, a minha casa de infância não é melhor do que a casa do Tião. Tenho uma facilidade muito grande em me colocar no lugar deles».

E não tem dúvidas do que faria se trabalhasse no Jardim Gramacho e alguém lhe dissesse «sai do lixo e vem trabalhar num estúdio de arte durante três, quatro semanas, olha, vou-te levar para outro país, mas depois você volta aqui no lixo, tá?» - «Lógico que eu quereria ir, ainda mais sendo pago por isso».

No documentário, Tião Santos, que dirige a associação de catadores de Gramacho, vai a Londres assistir ao leilão do quadro onde aparece retratado, ao estilo de «A Morte de Marat», de Jacques-Louis David.

O quadro foi vendido por mais de 30 mil euros, dinheiro doado integralmente à associação dos catadores. «Você muda a vida de qualquer pessoa mostrando a vida dela de uma outra direcção – isso é a coisa mais importante que o filme ofereceu a todos nos participantes», sustenta Muniz.

«É inacreditável o que está acontecendo por causa de uma fotografia», diz o artista, referindo-se à repercussão do filme. Acreditando que «o grande compromisso da arte é com o realismo, mas um realismo engajado», e que «o artista tem como obrigação retratar o mundo na sua complexidade», Vik Muniz considera que participou numa «experiência artística forte, intensa e transformadora», que o fez acreditar que «a tal musa», a arte, «afinal existe».

SAPO/Lusa