O cinema soviético de Eisenstein e Vertov chegou a Portugal em 1926, seduziu a crítica, os cineastas e determinou a estética de filmes como “Maria do Mar”, “A Revolução de Maio” e “Aldeia da Roupa Branca”.

Cineastas e críticos de cinema como António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Chianca de Garcia, Afonso Lopes Vieira e José Gomes Ferreira multiplicaram elogios, nas publicações portuguesas dos anos de 1920-1930, à produção que emergia com a revolução russa. Manoel de Oliveira considerou-a revolucionária por si mesma.

“O cinema russo da revolução social impunha-se revolucionário também. E foi-o. Não apenas porque propagasse uma ideologia marxista (...),mas porque era [revolucionário] de raiz”, escreveu o realizador de “Douro, Faina Fluvial”, no catálogo da Cinemateca Portuguesa, sobre o “Ciclo do Cinema Clássico Soviético”, realizado em 1987, nos 70 anos da revolução.

Em causa estava o cinema russo que emergiu com a Grande Guerra de 1914-18, deixando para trás “um esboço” de produção. “O cinema que sai da Revolução de Outubro adquire uma personalidade própria, nas linhas práticas e teóricas”, lê-se no catálogo da Cinemateca.

É o cinema de Dziga Vertov, o realizador de “O Homem da Máquina de Filmar” (foto ao lado), e de Sergei Eisenstein, de “O Couraçado Potemkine” (em cima) e “Outubro”, o cinema feito de grandes planos, em que a montagem sobe à primeira linha da narrativa e a fotografia se afirma como elemento dramático.

Cerca de meio século antes de Oliveira, António Lopes Ribeiro, num texto para o Diário de Lisboa, de 20 de dezembro de 1929, considerava que “Tempestade na Ásia”, de Vsevolod Pudovkine, conseguira conquistar “a totalidade dos verdadeiros cinéfilos, unificando a crítica num mesmo coro de entusiásticos elogios”. Meses antes, o realizador de “O Pai Tirano” já tinha acusado de “ignorantes” os que se opunham ao novo cinema soviético em Portugal: “É o defeito de se escrever para os jornais sem se ter frequentado o liceu”.

A aceitação do cinema da chamada “vanguarda soviética” em Portugal foi analisada pelo antigo diretor da Cinemateca Portuguesa Luís de Pina, autor de obras como “História do Cinema Português” e “Da Lanterna Mágica ao Cinematógrafo”.

“Sempre me pareceu estranho que o Governo da Ditadura Nacional (1926-1933) tivesse autorizado a exibição em Portugal de 12 filmes soviéticos de longa-metragem, entre os quais algumas obras-primas como ‘A Linha Geral’, de Eisentein, e ‘A Mãe’, de Pudovkine”, escreveu no catálogo de 1987.

No seu texto, cita Afonso Lopes Vieira, que se disse deslumbrado com “A Linha Geral”, na revista Kino (novembro de 1930), embora confessasse ter sentido alguma fadiga, durante a exibição, e José Gomes Ferreira, que chegou mesmo a colocar Chaplin e a sua “Quimera do Ouro” em segundo plano, depois de Eisenstein, num artigo para a Imagem (janeiro de 1930), “porque a verdade é esta: até ao aparecimento deste russo genial, existia um caos”.

A atenção de Luís de Pina prende-se porém no impacto da vanguarda soviética na produção portuguesa. “Ouvi da boca de Chianca de Garcia”, que o filme “A Aldeia da Roupa Branca” (1933) foi “concebido como uma ‘Linha Geral’ amena, popular”. “Trata-se, no fundo, da mesma história de substituição de um processo coletivo antigo, por um processo coletivo novo, baseado na máquina” – o trator de Eisenstein e a camioneta de Caneças.

No entanto, o impacto do cinema soviético da década de 1920 na produção portuguesa já vinha de trás. Em 1929, três anos antes da criação da Tobis, António Lopes Ribeiro e Leitão de Barros visitaram Moscovo e os meios de produção local.

“Vendo-se ‘Lisboa, Crónica Anedótica’ [1930], evocam-se imagens de Eisenstein ou de Vertov, diante de ‘Maria do Mar’ [1930], reveem-se processos de Pudovkine, tal como certos rostos e enquadramentos de ‘A Severa’ [1931]”, o primeiro sonoro português, escreve Luís de Pina sobre os filmes de Leitão de Barros.

O próprio realizador, aliás, deixou claro que “Maria do Mar” “era fortemente influenciado pelo cinema humano que a Rússia lançou no mundo”, mas com “um sentido mais pitoresco, mais português, do que o ritmo trágico da alma eslava”.

Para Luís de Pina, porém, o paradoxo da aceitação do cinema revolucionário soviético, nos alvores da ditadura portuguesa – ou o cúmulo da “heresia”, como lhe chamou –, aconteceu com “A Revolução de Maio” (1937), elogio ao golpe que impõe a Ditadura Nacional, dirigido por Lopes Ribeiro, que o escreveu com António Ferro, responsável pelo Secretariado Nacional de Propaganda do Estado Novo.

O filme “acusa nítidas influências formais da escola russa, dos processos de convencimento ideológico dos autores soviéticos”, escreveu o antigo diretor da Cinemateca. Embora também aqui predominasse o “pitoresco português”, mais do que “a afinidade que aproxima tanto a alma portuguesa, da alma eslava”, elogiada por António Ferro, em “Hollywood, capital das imagens”.

Em 1933, porém, o ano em que a Ditadura Nacional se transforma em ditadura do Estado Novo, com a nova Constituição, o cinema soviético desapareceu das salas portuguesas. Na altura, a vanguarda saída da revolução russa, com a sua “nova poesia visual”, também já cedera ao “realismo socialista”.

Com a passagem do mudo ao sonoro e a afirmação de Josef Estaline no poder, na década de 1930, há “uma mutação profunda no cinema soviético, ao mesmo tempo que se assiste a um nítido enfraquecimento da vanguarda e do seu papel”, lê-se no catálogo da Cinemateca. “É com essa viragem de orientação estética que se tem de relacionar o silêncio a que Vertov será votado, depois de ‘Três Cantos para Lenine’, e as dificuldades com que Eisenstein se debateu para filmar ‘O Prado de Béjine’”, inspirado num conto de Ivan Turgenev.