O filme “Silêncio”, que estreia a 23 de dezembro nos EUA e a 19 de janeiro em Portugal, retrata a perseguição dos cristãos no Japão no século XVII – o derradeiro capítulo do período que o historiador britânico Charles Boxer denominou de “século cristão” (1549-1650).

Cristóvão Ferreira (1580-1650), o jesuíta português que cedeu à tortura e renunciou à fé, figura no centro da trama do realizador Martin Scorsese.

Os jesuítas chegaram ao Japão em 1549, três anos depois dos portugueses. "Os japoneses começaram a adotar muitas coisas que os ‘namban-jin’ (‘bárbaros do sul’) traziam e como Japão estava em guerra civil precisava de muitos materiais militares – não só as espingardas –, mas também outros equipamentos que eram necessários”, explica Mihoko Oka, da Universidade de Tóquio, à agência Lusa.

A oferta foi-se diversificando, incluindo, por exemplo, as sedas da China e outros produtos luxuosos; o comércio prospera e atinge o auge na segunda metade do século XVI, abrindo caminho a um movimento de conversão ao cristianismo no Japão e em toda a Ásia.

Tal deveu-se à relação indissociável entre o mercador e o jesuíta, patente desde os primeiros tempos, desde Francisco Xavier, como assinala a investigadora Tereza Sena, que publicou recentemente um artigo em inglês na Revista de Cultura intitulado “Em busca de um outro Japão”.

“Tornam-se interlocutores privilegiados e o proselitismo jesuítico é muito feito a partir das elites. Depois, porque são padres, também exercem um certo poder regulador sobre os próprios comerciantes e marinheiros, sobre toda essa ‘horda’ de homens que respeita a autoridade religiosa”, esclarece a investigadora.

Depois há todo um contexto que surge como terreno fértil: “Estamos numa fase decadente de um Japão feudal, com grandes lutas intestinas, antes da unificação e, portanto, a conversão de senhores feudais surge ligada às oportunidades do comércio através de cujos rendimentos financiam a guerra”.

“À medida que o poder central se vai fortalecendo, ou seja, com a aproximação de uma nova ordem”, refere Tereza Sena, deixa de haver possibilidade para jesuítas e comerciantes portugueses “jogarem nas rivalidades” entre os senhores feudais que “começam a ter uma postura comum relativamente ao exterior”.

Em 1587, surge um primeiro édito de expulsão dos jesuítas, mas, exceção feita a pontuais perseguições, não é mais do que “um aviso”. Os jesuítas acabam “por ir ficando” porque o comércio com os portugueses era “muito importante” e “eles estavam muito envolvidos”, pontualiza Mihoko Oka.

O ‘golpe de morte’ dá-se em 1614, com um novo édito de expulsão já sob o ‘shogunato’ Tokugawa.

“Com essa unificação, essa subjugação a um poder central, tenta-se também, de alguma forma, eliminar ou controlar a influência estrangeira, começando a criar-se a ideia – que vai vigorar depois ao longo de todo o período maior da perseguição anticristã – de que os missionários, exatamente por essa sua função de mediação, são agentes do poder estrangeiro”, sublinha Tereza Sena.

Neste âmbito, relata, emerge “todo um receio”, alimentado também por “muita intriga”, de “uma eventual tentativa de invasão do Japão por estrangeiros”, também porque, “neste momento, há a união das duas coroas, estando Portugal sob domínio espanhol”.

Na sequência do édito de 1614 terão deixado o Japão – segundo estimativas citadas por Tereza Sena – 114 padres em pelo menos cinco barcos com destino a Macau e Manila.

De acordo com a investigadora, um relato coevo aponta que ficaram no país 18 padres e nove irmãos jesuítas, entre eles Cristóvão Ferreira, que chegou em 1609 ao país do sol nascente, onde viveu quase duas décadas na clandestinidade.

Com a consolidação do poder recente, um dos principais objetivos do primeiro período do ‘shogunato’ Tokugawa passa “obviamente eliminar” essa presença.

Inicialmente, recorda Tereza Sena, recorreram aos martírios como “demonstrações para persuasão pública” e “atemorização das populações”. No entanto, surtem o efeito contrário – acabando por jogar a favor da propaganda cristã, ao mostrar a força da fé e ao proclamar heróis em nome de Deus.

“A partir de certa altura, o poder percebe que seria muito mais útil a apostasia” e, neste sentido, apura as técnicas de tortura, introduzindo a da “fossa” – que Cristóvão Ferreira terá sido um dos primeiros a experienciar, em 1633, pelo que a renúncia à fé do jesuíta português constituiu um “grande triunfo”, sustenta.

Da apostasia de Cristóvão Ferreira até à definitiva expulsão dos jesuítas e ao fim do comércio português foram meia dúzia de anos.

Inscrito na história ficou um movimento de conversão ao cristianismo sem precedentes no Japão: o número de cristãos foi calculado no início do século XVII em 370.000, segundo o historiador Gonoi Takashi, numa população estimada entre 15 e 20 milhões, refere a docente da Universidade de Tóquio.

Para Mihoko Oka, “várias razões” poderão explicar a origem de tamanha adesão, incluindo o facto de os jesuítas ajudarem as populações, com obras de caridade, como hospitais ou orfanatos, para admiração dos japoneses, e em contracorrente com a prática dos líderes budistas ou xintoístas.

“Os japoneses ficaram admirados. (...) Os bonzos exigiam muito dinheiro para quem quisesse ser salvo, enquanto os jesuítas até davam dinheiro, comida e agasalho aos pobres, o que atraiu as pessoas”.

Atualmente, a população cristã no Japão representa 0,8% do total, o que significa que “os missionários do século XVI e XVII conseguiram fazer muitos mais cristãos do que agora”, concluiu Mihoko Oka.

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