O reinado de Daniel Craig, iniciado em "007: Casino Royale" (2006), marcará para sempre uma saga com mais de cinquenta anos de história. Craig criou em três filmes o melhor 007 de sempre e neste "Spectre" confirma o seu brilhante trabalho. É a interpretação que, em termos humanos, mais se aproxima da visão original do seu criador, o autor Ian Fleming. Ao ator foi permitido desenvolver um personagem que não faz reset a cada filme, o que lhe permite explorar e aprofundar o martírio de uma alma comprometida com as suas obrigações.

A necessidade de não perder os fiéis espectadores da série, juntamente com a fidelização de novos públicos, habituados a outro tipo de blockbusters (mesmo recordando que a saga Bond, desde os seus primórdios, é a mais original dos blockbusters) levou a um processo de revitalização. Isso incutiu um lado cerebral e adulto às aventuras de 007 criando-se uma dinâmica distinta que não abandona o espetáculo mas consolida e ramifica os efeitos da narrativa, humanizando heróis e vilões numa abordagem que culmina majestosamente em "Spectre".

Ainda que os produtores de Bond não gostem de falar de sequelas, os quatro últimos filmes de 007 formam um arco de história. Antes tínhamos aventuras soltas, onde, invariavelmente, James Bond tentava impedir uma terrível conspiração que ameaçava o mundo. Atualmente, a saga ganhou contornos mais intimistas, o amor, o desgosto, a vingança, a vida e a morte são aspetos importantes no desenho psicológico de um espião que vive numa zona cinzenta.

Ao revermos "007: Casino Royale", "007: Quantum of Solace" (2008) e "007: Skyfall" (2012), conclui-se rapidamente que os eventos destes filmes não só estão encadeados como a abordagem é definitivamente mais adulta e distinta. As personagens femininas não são ocas, os principais antagonistas entram para a galeria de vilões memoráveis (Mads Mikkelsen, Mathieu Amalric e Javier Bardem) não só pela escrita dos seus papéis como pela qualidade e desempenho dos atores e dos acontecimentos que deixam sempre o espetador com um nó na garganta ao invés de lhe oferecerem um tranquilizador happy ending.

Nos três últimos capítulos, o agente 007 tem-se visto a braços com um mau karma... o que é um eufemismo quando se está a falar de Spectre, a organização mais famosa da mitologia 007 e que se apresenta agora ao mundo em pleno século XXI.

Os responsáveis pelo financiamento do terror global (Le Chiffre, de "Casino Royale"), a manipulação de Estados soberanos (Dominic Greene, de "Quantum of Solace") e o cyber terrorismo (Silva, de "Skyfall") apontam todos para a mesma ideia: num reino de terror e manipulação, a informação é realmente poder.

Esta premissa, aliada às contas por ajustar por Vesper (a única mulher que Bond realmente amou em "Casino Royale") e M (a sua chefe que, de certo modo, ocupava o lugar da mãe) está no seio da narrativa uma história pessoal que liga James Bond ao seu némesis, Oberhauser, interpretado de forma sublime por Christoph Waltz – vencedor de dois Óscares e um dos grandes intérpretes da atualidade.

Christoph Waltz assenta que nem uma luva no papel de super vilão, daqueles que vivem em palácios no meio do nada. Ele possui um grande arsenal de ideias maléficas e atos sádicos para com o nosso herói. Já estávamos com saudades deste tipo de escumalha com pedigree. Pelo meio temos outra grande intérprete, a bela e talentosa atriz francesa Léa Seydoux, numa personagem que faz igualmente a ponte entre o passado e o presente.

Em torno da trama central, destaca-se a qualidade dos personagens secundários que, quando comparados com aqueles da era pré-Daniel Craig – uma espécie de cameos em formato de punchline – surgem como pessoas de corpo inteiro. Em "Spectre" encontramos o lacónico vilão Hinx (Dave Bautista) que deixa os seus músculos falar por si, uma ponta solta em Mr. White (Jesper Christensen), a agenda secreta de C (Andrew Scott) e os companheiros de Bond que estão mais interventivos: o novo M (Ralph Fiennes), a assistente de 007, Moneypenny (Naomie Harris), Tanner (Rory Kinnear) – o fiel confidente de Bond nos livros de Ian Fleming –, e Q, o armeiro da era digital do MI6, num papel mais alargado, interpretado pelo poço de talento que é Ben Whishaw.

A realização de Sam Mendes é inspirada, combinando a fina arte de bem representar, o fulguroso espetáculo dos efeitos visuais e stunts reais com um argumento intenso e cerebral. Ao lado de Sam Mendes esteve uma equipa de produção com anos de experiência neste filão cinematográfico.

A ação contém sequências que vão deixar os espectadores com os corações aos pulos. Começando pela colorida e explosiva cena inicial no México, teremos depois um tributo com o pé na tábua em Roma, num Aston Martin DB10 (na primeira vez que a série passa pela cidade milenar), reservando tempo para seduzir a espantosa Monica Bellucci e dar um salto aos Alpes austríacos – recordando as mirabolantes sequências na neve da saga 007 –, passando por Marrocos, cidade que traz sempre mistério e classicismo aos filmes de espiões, desaguando finalmente em Londres com um grande big-bang. As cerca de duas horas e trinta minutos passam num piscar de olho.

Sam Mendes parece ter ganho o toque de Midas (sem o lado trágico). O ritmo é intenso e a ação espetacular mas isto não o impede de trabalhar os aspetos mais subtis de uma história de que os espectadores não vão querer perder nem um minuto.

"Spectre" é um fenomenal capítulo da renovada era dourada de James Bond.