Para quem tem do Fado a ideia de muita pompa, poses magnânimas, loucas lantejoulas e vestidos de fazer inveja a muito boa artista que ande a pisar passerelles hollywoodescas, Cristina Branco não será certamente a primeira imagem que surgirá quando a conversa cair para esse lado musical. Aqui reina uma sensualidade tímida, uma presença em palco com reminiscências de finais de adolescência, uma pose discreta onde respiramos um erotismo que se vai revelando à medida que o tempo avança.

Ontem à noite, o São Luiz assistiu a um espectáculo que, ultrapassando as fronteiras do reino do Fado, chegou a territórios como o Tango, músicas do mundo ou a música Pop.

Em “Quando julgas que me amas”, música imaginada para ser tocada por uma banda de corpo inteiro, assistimos a uma versão preenchida apenas com a alma pianística de Mário Laginha e a voz de Cristina Branco, aqui revelada em todo o seu esplendor.

“Um Amor”, poema de Maria João e instrumentado por Mário Laginha, vê Cristina Branco sussurrar-nos em castelhano, como que mostrando que poderia cantar numa qualquer língua ou dialecto do planeta sem perder o jeito para nos lançar um feitiço.

Quando deixa, por momentos, o palco entregue aos músicos, começamos por nos sentar numa esplanada à beira-rio, a ouvir uma guitarra portuguesa acompanhar a calma da corrente para, de repente, darmos por nós no meio de uma turba a dançar um dos alucinados temas de Kusturika e sua banda.

Quando “Canta outra vez para o Douro transbordar”, pensamos que a sua voz convocará de longe ondas gigantes que rebentarão não tarda nada contra as paredes do São Luiz.

“Cansaço” devolve-nos ao território do Fado clássico, ao dos amores impossíveis, das dores e lamentos, das vidas guiadas por corpos que há muito viraram fantasmas.

“Sete Pedaços de Vento” é um momento verdadeiramente pop, como se Devendra Banhart, depois de mais uma visita à Lusitânia, se tivesse finalmente apaixonado pelo fado.

Em “Bomba Relógio”, tema de Sérgio Godinho, Cristina Branco atira-se à Pop métrica e compartimentada, a esse jogo de palavras, rimas e partidas da Língua de Camões.

A terminar o primeiro acto, o clássico “Meu Amor é Marinheiro”, onde não podemos deixar de recordar Amália Rodrigues e de lhe agradecer ter feito do Fado Património Mundial, aqui redescoberto, recriado e cantado de forma tão apaixonada e singular por Cristina Branco.

Antes da despedida final, somos levados a Coimbra e à sua noite negra, de capas esvoaçantes e ruas misteriosas, com o belíssimo “Os Teus Olhos São Dois Círios”.

Para que a viagem terminasse onde tudo começou, e para que a tristeza não se instalasse nos corações pulsantes, Cristina Branco cantou “Maria Lisboa”, poema de David Mourão Ferreira em homenagem à grande cidade alfacinha, essa cidade bonita, encantatória e voluptuosa.

E lá partimos nós, em busca de uma traineira, caravela ou de um simples barco de borracha, prontos a descobrir novos caminhos marítimos que nos devolvam a grandeza e a paz de alma. Bravo, Cristina, bravo.

Pedro Miguel Silva