Nos últimos meses, canções e discos dos Arcade Fire, St. Vincent ou Damon Albarn têm abordado diretamente as ligações entre o pessoal e o virtual, com relatos de experiências quotidianas que não só não conseguem esquivar-se ao online como, no limite, se resumem a pouco mais do que uma recorrente relação com ecrãs.

Além de se juntar a esta lista de reflexões, "The Future's Void", o segundo álbum de EMA, acrónimo de Erika M. Anderson, é talvez o retrato mais incisivo e abrangente centrado nestas temáticas. Quase todo o alinhamento passa por aí e essa opção poderá ser uma surpresa para quem conheceu a cantautora e multi-instrumentista em "Past Life Martyred Saints" (2011), disco intimista e autobiográfico, catarse de depressões e acontecimentos traumáticos. Mas se o foco da maioria das canções se desviou e ganhou outra amplitude, a música de EMA continua tão pessoal (e felizmente transmissível) como nessa muito aplaudida estreia.

Videoclip de "Satellites":

Gravado a solo, em casa, acolhendo contribuições de terceiros apenas na fase da mistura, "The Future's Void" mantém a espontaneidade e crueza que tanto impressionavam no antecessor. A sua autora garante que parte das canções que aqui ouvimos não anda muito longe do registo das primeiras maquetas, ou não fossem as demos dos Nine Inch Nails uma das maiores inspirações do álbum.
Esta admiração por Trent Reznor dará razão a quem aponta EMA como filha (tardia) dos anos 1990, musicalmente falando. A folk, rock e noise da estreia já seriam argumentos suficientes, mas este regresso reforça a aproximação a PJ Harvey e pisca o olho aos Hole (ouça-se "So Blonde", pastiche delicioso da banda de Courtney Love e um dos raros episódios soalheiros do alinhamento).

Se a herança do indie rock de há duas décadas - quase sempre eletrónico, às vezes industrial - é determinante, a influência da literatura sci-fi terá um peso comparável. Uma canção como "Neuromancer" não só aproveita o título da "bíblia" cyberpunk de William Gibson como mostra que a ficção científica de meados dos anos 1980 está (perigosamente?) próxima da realidade de hoje.
Dispensava-se, talvez, que EMA se servisse desta comparação como pretexto para alguns julgamentos comportamentais ("Making a living off of taking selfies/ Is that the way that you want it to be?/ It’s such a narcissistic baby/ It’s such a new millennial baby"), embora também sugira aqui um retrato mais intrigante sobre um mundo vigiado pela NSA ("They know more of it than you do/ About the things all that you do"). De qualquer forma, o ritmo do tema, amparado numa percussão infernal e infecciosa, é tão poderoso que a força de "Neuromancer" está longe de se limitar ao disparo de palavras.

Videoclip de "So Blonde":

"3Jane" volta a derivar da obra mais emblemática de William Gibson ao repescar o nome de uma das suas personagens, ainda que a atmosfera da canção se situe no extremo oposto de "Neuromancer". Belíssima balada etérea ao piano, também aponta o dedo à vertigem da auto-estrada virtual, mas a vulnerabilidade da interpretação de EMA dá-lhe um tom mais comovente do que acusatório ("I get stressed out and I just, I wanna get high/ It's cause I've seen my face and I, I don't/ Recognize/ The person that I feel inside, inside, inside").
A atmosfera melancólica é retomada em "Dead Celebrity", requiem devedor do hino militar fúnebre "Taps" e uma bonita despedida com direito a orgão, marcha lenta e fogo de artifício. Aqui, EMA questiona o fenómeno viral da morte das celebridades de forma menos eriçada do que noutros momentos ("Tell me what you wanna see/ When you click on the link/ Of the dead celebrity").

Tal como "3Jane", "Cthulu" pede emprestado o título a outra entidade literária, não de William Gibson mas de H.P. Lovecraft. A canção, comandada por um crescendo visceral - ocorre-nos PJ Harvey produzida por Trent Reznor -, seria uma banda sonora adequada para uma eventual adaptação do conto de terror do escritor norte-americano. O lamento de "Smoulder" ou o rugido distópico de "Satellites" mantêm-se neste comprimento de onda, mas a distorção doce da sussurrante "When She Comes", o minimalismo para piano e voz de "100 Years" e a convidativa nuvem de sintetizadores de "Solace" dão conta dos muitos contrastes de "The Future's Void". Este alinhamento, aglutinador sem cair na dispersão, sublinha, ainda mais do que o disco de estreia, a versatilidade de uma voz que tanto revisita territórios férteis como desbrava e conquista alguns novos caminhos - e também volta a conquistar a nossa atenção quando nos convida para a viagem virtual.