Um concerto a 360º, mas só para alguns

Numa atuação com uma segurança e profissionalismo inatacáveis - como aliás é habitual -, os U2 apresentaram a sua nova digressão a 45 mil pessoas. E o seu carisma quase fez esquecer que o espectáculo não contou, afinal, com o palco exactamente a 360º.

Cerca de quinze minutos depois da hora agendada, os U2 subiram ao palco do Estádio de Coimbra. "Está tudo bem?", perguntou Bono com um sotaque ligeiramente abrasileirado. E depois de uma espera condimentada com muitas ondas e assobios, pareceu que sim. A banda dificilmente pôde queixar-se de uma receção tão efusiva, recheada de gritos e aplausos, apenas os primeiros de inúmeros que marcaram este regresso do grupo a Portugal - a visita anterior tinha sido em 2005 no Estádio de Alvalade, em Lisboa.

E se a banda não se queixou, a maioria dos 45 mil espectadores (para não dizer todos) muito menos, até porque o grupo - e em especial o vocalista - teve o público na mão desde os primeiros segundos. Bono pede para levantar os braços? Com certeza, o público obedece. Bono pede para bater palmas ao ritmo da música? É já a seguir. Então e gritar enquanto Bono controla o volume e a duração do grito com os movimentos dos braços? Melhor ainda, a adesão é imediata (quem pode, pode).

Proximidade relativa

Com tanta dedicação e malabarismos controlados, ninguém parece ter reclamado muito do facto de o palco não estar no centro do Estádio, mas sim num dos cantos, quase encostado a uma parede - ou seja, quase como num concerto comum, desperdiçando assim as potencialidades de um palco a 360º. E assim perdeu-se o aspecto mais inovador da 360º Tour, já que o público que esteve no extremo oposto não contou com a tal proximidade sugerida.

Mesmo assim, quem assistiu à atuação não chegará a dizer que comprou gato por lebre. A vertente tecnológica é, desde há anos, um alicerce incontornável nos espetáculos dos U2 mas não o único. Nem sequer o mais importante, como se comprovou em duas horas onde o carisma do grupo e uma mão cheia de canções fortes falaram mais alto (não que a tecnologia tenha sido discreta - o palco não abdicou de pontes giratórias, da icónica garra gigante ou de uma eficaz componente vídeo).

Pode acusar-se o concerto de ter sido algo mecânico em vários momentos - até porque seguiu a estrutura dos restantes da digressão -, mas o quarteto também deixou pormenores que fizeram a diferença. Por exemplo, quando Bono mostrou ter feito o trabalho de casa ao informar-se acerca do local onde estava. "Sei que esta cidade tem uma grande universidade. Mas nesta banda ninguém andou na universidade", brincou, perguntando depois a The Edge, Larry Mullen Jr. e Adam Clayton que profissões quereriam ter caso tivessem optado por um curso universitário.

U2

Aplaudir sim, dançar nem por isso

No alinhamento não houve momentos especialmente inesperados, o que também não parece ter aborrecido a maioria. Até porque muitos espectadores nem reagiram assim tão bem a algumas supresas. O episódio mais emblemático terá sido quando o rock de estádio deu lugar a uma discoteca XXL. Não, não foi com "Discothèque" (uma das muitas ausências a lamentar) mas com a versão revista (e melhorada) de "I'll Go Crazy If I Don't Go Crazy Tonight", onde a percussão roubou protagonismo à guitarra e a eletrónica ganhou mais evidência. E ainda bem. Ou não, porque foram poucos (pouquíssimos) os que dançaram.
Quase tão fria, a reacção a "Hold Me, Thrill Me, Kiss Me, Kill Me", talvez a melhor coisa do filme "Batman Para Sempre", ficou aquém do que uma das mais vibrantes canções dos U2 pedia (e ouvi-la até foi quase um luxo, uma vez que nem sempre consta dos concertos do grupo).

Tirando estes momentos, o concerto parece ter acertado em cheio no coração do público, tanto nos temas mais acelerados ("Elevation", "Vertigo", "Get on Your Boots" ou a mais velhinha mas sempre bem-vinda "I Will Follow"), épicos ("Sunday Bloody Sunday", "Magnificent", "Where the Streets Have No Name") ou medidativos, baladeiros e por vezes balofos (nem todas as canções midtempo podem ter o encanto de "With or Without You", os inéditos apresentados que o digam).

Os U2 e os outros

Nem só de música viveu a noite. A palavra foi propagada ao melhor estilo Bono, que ali contou com um invejável exemplo de comunhão colectiva (se o slogan "por um mundo melhor" não existisse já, seria muito provavelmente adoptado pelos U2).
O concerto teve a "benção" do Bispo (e Nobel da Paz) Desmond Tutu , que surgiu num segmento vídeo na introdução do clássico "One", e homenageou a ativista birmanesa (e também Nobel da Paz) Aung San Suu Kyi em "Walk On", ocasiões que mantiveram presente a vertente solidária pela qual a banda também se distinguiu - e que, acalmem-se os cínicos, não se fica só pelas palavras quando o grupo doa a totalidade das vendas dos bilhetes da Red Zone a associações humanitárias.

Como extra, o concerto deixou, já perto do final, uma pequena animação com naves espaciais, alienígenas e o Space Baby, personagem já familiar nas digressões do quarteto, e em momentos anteriores convocou a música de terceiros, desde a entrada em palco feita ao som de "Space Oddity", de David Bowie, a citações de "Let it Be", dos Beatles, ou "One Love", de Bob Marley.
E assim, com mais de vinte canções aliadas a uma atitude empenhada e humilde, os U2 terão justificado o esforço de quem perdeu, pelo menos, um bom par de horas em filas de trânsito (tanto na entrada como na saída de Coimbra) ou teve de lidar com um recinto cuja organização foi algo confusa - não foram poucos os espectadores obrigados a dar voltas ao estádio (e até aos prédios em torno deste) para encontrar a entrada indicada nos respectivos bilhetes (o facto de não terem lugares marcados também não ajudou e fez com que muitos se sentassem nas escadas).

Um aquecimento com "boas canções"

Antes dos U2, os Interpol não se saíram nada mal naquilo que se exige a uma primeira parte. A banda nova-iorquina acendeu o rastilho para uma noite luminosa (literalmente, com muitos telemóveis a assinalar a sua entrada em palco) e reforçou a coesão visível nas suas passagens anteriores por cá, mesmo não tendo sempre canções tão diretas como as dos senhores da noite - mas são "boas canções com grandes texturas e experimentação sónica", diria Bono mais tarde ao agradecer ao grupo de "Slow Hands" e "The Heinrich Maneuver", um dos muitos que a banda irlandesa continua a influenciar enquanto lhes dá a mão.

Fotos: Lusa