Faz no domingo cem anos que a escritora do “gótico sulista” nasceu no Estado da Georgia, com o nome Lula Carson Smith. Morreu de hemorragia cerebral, aos 50 anos, depois de uma vida limitada pela dor, pela doença e por crises de alcoolismo.

O escritor Charles Bukowski descreve a morte da autora em poema: “Ela morreu de alcoolismo/ enrolada num cobertor/ sobre uma espreguiçadeira/ num navio/ no oceano. Todos os seus livros de solidão aterradora/ todos os seus livros/ sobre a crueldade/ do amor sem amor/ foi tudo o que restou/ dela/ quando o turista que passava/ descobriu o seu corpo/ avisou o capitão/ e ela foi rapidamente despachada/ para outra zona do navio/ enquanto tudo continuava/ tal como ela havia escrito”.

Sendo certo que tudo o que restou dela foi a obra, não é menos verdade que a sua vida se perpetuou através dos seus livros, que em Portugal estão a ser reeditados pela Relógio d’Água, precisamente para assinalar o centenário do seu nascimento e o cinquentenário da sua morte.

O livro “O Coração é um caçador solitário”, traduzido por Marta Mendonça, está desde esta semana nas livrarias, e a “Balada do Café Triste” vai ser publicado na próxima semana.

“O Coração é um caçador solitário” é o primeiro romance escrito por Carson McCullers, com apenas 23 anos, e foi considerado uma “obra-revelação” de “surpeendente maturidade”, tendo-se tornado rapidamente uma referência na literatura do século XX.

A história passa-se no sul dos Estados Unidos, numa vila da Georgia, nos anos de 1930, num cenário desolado de intolerância racial e isolamento, onde John Singer, um surdo-mudo, se torna de súbito confidente de um grupo de personagens marginais, quando o seu único amigo, também surdo-mudo, é institucionalizado e a sua rotina se altera.

Entre as personagens que o procuram, existe uma adolescente, apaixonada pela música, que sonha compor sinfonias. A música é, aliás, recorrente na obra da escritora, tendo ela própria estudado música e sonhado seguir uma carreira musical, interrompida por questões de saúde.

Um agitador socialista que passa os dias alcoolizado, o proprietário de um café com desejos sexuais ambíguos e um médico negro que luta pela igualdade racial são outras personagens que compõem o mosaico desta história.

Todos eles se sentem desenquadrados da sociedade e procuram Singer, julgando que ele os compreende, mas o surdo-mudo, impassível, apenas procura, em cada visita que faz ao amigo, arrancá-lo à indiferença.

“A Balada do Café Triste”, que Tennessee Williams classificou como “uma das obras-primas em prosa da língua inglesa”, data de 1951 e descreve uma pequena povoação, apenas animada por um café, propriedade de uma mulher forte, independente e máscula, que se apaixona por um anão corcunda, mas que vê a felicidade abalada pela saída do ex-marido da prisão.

A Relógio d’Água vai editar ainda “Reflexos nuns olhos de ouro”, “Frankie e o casamento” e “Relógio sem ponteiros”, prevendo lançar um por mês, e mantém no seu catálogo "Contos escolhidos", selecionados e traduzidos pela escritora Ana Teresa Pereira.

McCullers foi admirada por Tennessee Williams, Graham Greene, Charles Bukowsky. E o escritor José Rodrigues Miguéis, que a revelou ao público português e traduziu "Coração, solitário caçador", definiu-a como “o caso mais impressionante da literatura norte-americana”.

Cem anos depois de ter nascido, Carson McCullers renasce constantemente na sua obra, a cada livro que é reeditado e a cada livro que é lido.