“Com uma diáspora tão grande, uma influência negra nas suas artes, que vai do fado a outras artes, que faz parte da entidade nacional do país, parece-nos muito evidente que há aqui uma falha e um racismo que continua em curso”, disse Raquel Lima, poeta, performer e arte educadora.

E adiantou: “Em disciplinas que vão da dança, teatro ou das artes performativas ou audiovisuais preocupa-nos muito a questão de quem controla os lugares de decisão”.

Para contribuir para a mudança, a UNA organiza hoje e domingo, em colaboração com o Espaço Alkantara, em Lisboa, um ciclo de formações para a construção de um espaço ritualístico – o Terreiro - que pretende “promover a interação, o diálogo e a partilha de conhecimentos, fortalecendo os laços na comunidade artística negra em Portugal e profissionais antirracistas do setor cultural português, através de formações e conversas”.

Para Raquel Lima, o racismo no setor das artes “tem a ver com poder”.

“Há muito poucas pessoas negras a fazer programação cultural, a fazer curadoria, a fazer encenação ou direção artística”, observou.

E recordou que a associação cultural UNA nasceu precisamente num “contexto antirracista” e “após observar uma série de assimetrias, não só em relação à atribuição do financiamento público para as artes”, mas também perante “uma certa valorização de narrativas que não contemplavam a experiência e as referências associadas às culturas negras”.

Apesar das perceções de quem vivencia estas situações, “é muito difícil fazer uma monitorização do racismo no setor artístico, porque não há dados étnico raciais” que ajudem a fundamentar essas observações.

Esse levantamento acaba por ser feito através da partilha de situações e das denúncias que chegam à UNA, como a recente censura da obra dos artistas brasileiros Dori Nigro e Paulo Pinto, cuja obra “Adoçar a Alma para o Inferno III", com alusões ao passado esclavagista do conde de Ferreira, foi censurada na Bienal de Fotografia do Porto.

Para colmatar a ausência de dados, a UNA está a promover um “automapeamento”, que permitirá perceber o papel e a presença da negritude na cultura em Portugal.

Ana Tica, produtora, agente cultural e membro da UNA, disse à Lusa que este projeto é muito “agregador”.

“Numa primeira fase, avançou, estão a ser recolhidos dados para criar uma montra com informação sobre artistas, profissionais negros das artes em Portugal”.

“Quem somos e o que fazemos” é a pergunta a que esta recolha de informações deverá dar resposta.

E prosseguiu: “Queremos ter dados que sustentem esta perceção que nós vivemos, mas que não deixa de ser uma perceção, porque não houve autorização para a recolha de dados étnico-raciais em Portugal e, a nível setorial, ainda não é possível comprovar situações que vamos sentindo no dia-a-dia e que partilhamos entre nós”.

A associação consulta ainda arquivos de história contemporânea e currículos escolares do ensino básico, nos quais identifica “uma grande ausência de referências de docentes das comunidades negras”, disse Raquel Lima.

“No fundo, tem a ver com continuidades históricas do colonialismo, uma construção da pessoa negra como inferior, profissional ou pouco capaz de criar. Há uma infantilização generalizada, que tem a ver com o negacionismo geral que o próprio país tem em relação à sua história colonial”, afirmou.

Raquel Lima identificou alguns avanços, como no discurso do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que atualmente reconhece massacres, o colonialismo e a escravatura, quando no passado chegou a dizer que o colonialismo até facilitou e até foi suave.

Ainda assim, e após passar a estar no discurso político, a mudança precisa de passar para as ações, disse.

Na opinião desta artista, uma das medidas reparadoras poderia passar pela criação de bolsas especiais para artistas emergentes das comunidades negras.