“O romance foi publicado em 1984. Mas hoje ele serve de aviso a uma Europa e a um mundo que convivem, às vezes distraidamente, com ameaças que Saramago evidenciou no plano ficcional, mas também em não poucas intervenções como cidadão”, afirmou Carlos Reis, em entrevista à agência Lusa.

Na sua opinião, “esta é uma questão central, na forma como [se lê] Saramago atualmente”, nas suas diferentes facetas.

“A História foi um dos grandes temas da ficção de Saramago, mas não a História como algo estabelecido e fixado para sempre. Justamente, Saramago propôs revisões ficcionais da História, tendo em vista o resgate de episódios e de figuras que a historiografia, digamos 'oficial', ignorou”, como acontece, por exemplo, no “Memorial do Convento” ou na “História do Cerco de Lisboa”, referiu.

Carlos Reis

Em “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, o protagonista – o heterónimo criado por Pessoa – “apercebe-se de como a vaga dos totalitarismos e das ameaças de guerra alastra pela Europa, em aliança com o salazarismo emergente” em Portugal, no início dos anos 1930, lembrou Carlos Reis.

“José Saramago é, verdadeiramente, um caso 'improvável' (creio que foi Eduardo Lourenço quem usou o termo) de êxito e de afirmação. Pelas suas origens, pela sua formação autodidata, pelo anonimato em que viveu durante décadas e pela sua revelação tardia como escritor, Saramago é um exemplo de como a persistência aliada ao talento podem superar o que pareciam ser barreiras inultrapassáveis”, declarou.

O professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra destacou que a exposição preparada, no âmbito dos 100 anos do nascimento do Nobel para a Biblioteca Nacional, em Lisboa, da qual “uma parte neste momento” está na Biblioteca Nacional de Espanha, teve como título “A oficina de Saramago”.

“Isto sublinha o significado que Saramago atribuía ao trabalho do escritor, em detrimento da inspiração, em que ele não acreditava. Teve, sim, intuições admiráveis e trabalhou muito como escritor”, salientou.

Vinte e quatro anos após ter sido agraciado com o Nobel da Literatura, Saramago “é visto como mais do que um escritor, embora essa seja, a meu ver, a faceta que sempre deve ser acentuada”, defendeu o comissário das comemorações.

“Mas a sua condição de cidadão que pensou, às vezes antecipando-se ao curso da História, temas sociais e políticos, contestou poderes e denunciou injustiças constitui atualmente um componente muito significativo do legado de Saramago. Mesmo quando não se concorda com esse legado e é bem sabido que Saramago não procurou consensos para agradar a todos”, ressalvou.

Para Carlos Reis, o autor de “Ensaio Sobre a Cegueira”, na sua “condição de cidadão e pensador, com voz influente, […] teve e tem uma presença muito forte no Brasil, sobretudo no meio académico, mas também fora dele”.