O espetáculo, com dramaturgia e encenação de Sara Barros Leitão, começa com o público concentrado à porta da sala de teatro, à espera do início dos trabalhos parlamentares.

Os dois únicos atores em palco, João Melo e Margarida Carvalho, simbolizam os dois funcionários, que no hemiciclo, entre deputados e membros do Governo, são responsáveis pelas “transcrições fiéis e concretas de tudo o que acontece na Assembleia da República” e que contam “os 50 anos de democracia no país”.

“É desproporcional. São duas pessoas para 230 deputados. São duas pessoas para registar 50 anos de história. São sempre duas pessoas que transcrevem tudo o que é dito. São os guardiões da nossa democracia”, afirmou Sara Barros Leitão.

Em declarações aos jornalistas, hoje no final do ensaio para a imprensa, Sara Barros Leitão, explicou que “o espetáculo começa, a partir dessas duas pessoas e acaba com essas duas pessoas” porque tudo o que se passa em cena “foi transcrito pelas mãos dessas duas pessoas”.

“Na verdade, não escrevo uma única palavra, neste espetáculo. Tudo o que é dito aqui [na peça], já foi dito na Assembleia da República, alguma vez, nestes 50 anos”, reforçou a encenadora.

Sara Barros Leitão explicou que a ideia de construir o "Guião para um País Possível" começou há mais de um ano, quando leu, pela primeira vez, um diário das Assembleia da República.

“O diário tem falas, reações, tem apartes, tem personagens, tem conflito. Tem tudo aquilo que guião de teatro costuma ter. Só que este é mais real (…) Há momentos muito emocionantes, outros muito comoventes, outros muito cómicos, outros muito insólitos. O espetáculo faz um arco emocional que passa por muitos desses momentos aproximando as pessoas a um lado humanista que, às vezes, não se sente na Assembleia da República, ou parece que não se sente”, referiu.

Guião para um País Possível

Os 50 anos do 25 de Abril, que se assinalam em 2024, foi outra das razões que conduziram à construção do espetáculo que terá mais três récitas no Teatro Municipal Sá de Miranda, na sexta-feira, às 21h00, sábado, às 19h00, e no domingo.

“Interessa-nos pensar sobre a democracia, os avanços e recuos, sobre a nossa história coletiva”, enfatizou, realçando o trabalho de pesquisa que permitiu “selecionar os momentos marcantes” que contam a história da democracia, mas também “momentos desconhecidos da população”, resgatando “histórias mais pequenas e invisíveis”.

Na peça, a encenadora “junta vários momentos” que aconteceram na Assembleia da República para tratar, em cena, a questão do pudor, da sexualidade, entre outros temas.

“Foi o deputado José Sócrates, ainda muito jovem, acabado de chegar da Covilhã que fez a intervenção a pedir a legalização do naturismo. Depois o momento da deputada italiana Ilona Staller, conhecida por Cicciolina, que obrigou à interrupção do plenário, depois de ter mostrado o peito, e as intervenções de Natália Correia ajudaram-nos a criar um momento, na Assembleia da República, em que o sexo, o corpo e o pudor podem entrar num lugar sempre muito institucional”, explicou.

O tema do machismo, entra em cena com intervenções proferidas no dia 8 de março de 1990.

“Nessa altura não havia a politização do Dia da Mulher. Na sessão desse dia, há uma série de deputadas que tentam politizar o Dia da Mulher e uma outra série de outros deputados que dizem frases como: 'As mulheres quando não protestam são mais belas'. Frases que envelhecem muito mal. Certamente, 33 anos depois, para muitos desses deputados ficaria muito mal visto e, infelizmente, outros continuam em 1990”, especificou.

Sara Barros Leitão estreou-se como atriz no Teatro Municipal Sá de Miranda, em Viana do Castelo, há 15 anos. Há dois anos, voltou já como encenadora para apresentar um espetáculo que concebeu e que também representou, "Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa", inspirado numa das “Novas Cartas Portuguesas”, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho das Costa, e nos registos relacionados com a criação do primeiro Sindicato do Serviço Doméstico em Portugal, no pós 25 de Abril.

Questionada pelos jornalistas, disse estar contente por regressar a Viana do Castelo, esperando que o público assista ao "Guião para um País Possível".

“Gostava que o público viesse e depois me dissesse que mensagem tirou”, afirmou, lembrando que, na sexta-feira, haverá uma conversa após o espetáculo.

"Guião para um País Possível" tem desenho de luz de Cárin Geada, composição musical de Pedro João, desenho de som de Mariana Guedelha, figurinos de Cristina Cunha, conceção de cenografia de António Quaresma e Susete Rebelo, coordenação da pesquisa de João Mineiro e apoio à dramaturgia e coordenação do Parlapatório de Carlos Malvarez.

O Teatro do Noroeste – Centro Dramático de Viana acolhe o "Guião para um País Possível" em contexto de residência de estreia, sendo também coprodutor do espetáculo.