Apresentado no Festival Correntes d’Escritas, que decorreu na Póvoa de Varzim, “De Bestas e Aves” (D. Quixote) é o primeiro livro de Pilar Adón, autora de vasta obra publicada, a ser editado em Portugal, depois de ter arrecadado vários prémios em Espanha, entre os quais o Prémio Nacional de Ficção Narrativa e o Prémio Nacional da Crítica.

Neste romance, uma pintora conduz em plena noite, sem destino, procurando fugir da culpa que carrega pela morte da irmã num acidente de automóvel, sem levar telemóvel nem ter avisado ninguém para onde ia.

Quando percebe que está a ficar sem gasolina, procura uma estação de serviço e perde-se, até que vai parar a Betânia, uma espécie de território fora do mundo, habitado por cabras, cães e mulheres que, no entanto, parecem estar à sua espera.

Desconhece, porém, que, para lá do portão a que bate, as mulheres se vestem e comportam de forma bizarra, que há entre elas uma menina sem pais que não vai à escola, que um estranho aparece de vez em quando a reclamar a casa, que um lago delimita as fronteiras do terreno, sobrevoado por aves de rapina.

Não quer estar ali, quer fugir, mas não consegue, e começa a sentir que talvez esteja condenada a ficar para sempre naquele lugar.

A descrição desta comunidade lembra algumas existentes e normalmente associadas a cultos e seitas, mas Betânia é um lugar totalmente fictício e preenche simplesmente aquele que é um dos temas que “mais interessam” à autora, o das “comunidades autorreguladas, autossuficientes e independentes”, que já tratou em romances anteriores, contou, em entrevista à Lusa.

A narrativa é sufocante e angustiante, à medida que o tempo passa e a protagonista se vê cercada por uma natureza selvagem, que não lhe permite encontrar a saída daquele lugar, e assediada por um grupo de mulheres que insiste em dar-lhe tarefas, que não responde às suas perguntas e que se comporta com ela como se aquele fosse o seu destino final.

“Todos os meus romances têm estes ambientes, são temas que sempre me agradaram e que sempre tratei, não só nas histórias, mas também na poesia. Interessa-me muito a forma como o indivíduo reage a estas situações, por vezes voluntariamente ou, como no caso do Coro [nome da protagonista], involuntariamente”.

Associado a este clima de claustrofobia, vem o desejo de fuga, outro tema “de grande interesse” para Pilar Adón.

“O desejo de estar noutro lugar. É também algo que penso que nos acontece frequentemente, o que queremos fazer, estamos sempre a pensar que estaríamos melhor noutro lugar, o que poderíamos ter feito e não fizemos, o que teria sido da nossa vida se tivéssemos seguido um caminho em vez de outro, esse sentimento de insatisfação. Atrai-me muito”.

Outro aspeto “frequente e voluntariamente presente neste livro” são as “dualidades”, desde logo no próprio título, “Bestas e Aves”, mas também no que está fora e dentro de Betânia, nas idades das mulheres (uma velha e a rapariga), ambas sábias.

Outra dualidade “que me interessou muito foi o confronto do indivíduo com o grupo. Coro é muito individualista, está também muito habituada a controlar tudo sozinha devido ao seu trabalho como artista, e vai dar a um grupo em que cada uma sabe muito bem qual é o seu papel”.

“É muito estruturado, há um choque que eu queria explorar. Enquanto indivíduos, aclimatamo-nos aos grupos, mesmo quando não queremos fazer parte do grupo. Acontece quando entramos num novo emprego, quando entramos na família do nosso parceiro e toda a gente controla a situação e nós não, quando entramos num grupo de amigos”, afirmou, explicando que todas estas dinâmicas sociais lhe interessam muito.

Do mesmo modo que lhe interessam dinâmicas psicológicas e que neste romance estão constantemente presentes, como nos momentos em que Coro faz perguntas concretas às mulheres da comunidade, que lhe respondem coisas absurdas.

“Se lhe fossem dadas respostas racionais, ela acalmar-se-ia e o leitor acalmar-se-ia. Quando perguntamos algo e obtemos uma resposta normal, o nosso humor relaxa. Quando obtemos respostas absurdas, a tensão aumenta ainda mais e é isso que eu queria que aumentasse”.

Em “De Bestas e Aves” a grande casa que as mulheres habitam e a natureza circundante, que inclui os animais, ganham uma força e um protagonismo na história que lhes garantem o lugar de personagens, porque “influenciam o estado de espírito das personagens humanas”, explicou, acrescentando que a “casa é também um elemento muito importante” em tudo o que escreveu.

“Ultimamente, tenho pensado que na narrativa em geral, naquilo que escrevo, há uma espécie de base, que são os temas de que estávamos a falar, a fuga, o desejo de estar noutro lugar, o isolamento, o medo. E aí construo a obra, que seria como a casa, e cada romance, cada livro, é como uma divisão dessa casa. Eu construo a sala, eu construo o livro. Quando termino, fecho a porta desse quarto, mas vou para outro quarto na mesma casa, porque faz tudo parte da mesma coisa. No final, são as mesmas questões que me perseguem”.

A natureza é outra dessas questões. Licenciada em Direito com especialização em Direito ambiental, Pilar Adón sempre se interessou muito pelo ambiente, e a sua escrita, que é muito anterior à formação académica, sempre esteve impregnada por temas relacionados com a natureza.

“Além disso, é uma natureza que conheço muito bem, porque é a natureza em que o meu pai sempre viveu. O romance é dedicado ao meu pai e ele era um bosquímano. O meu pai sabia perfeitamente como sobreviver no mato, o que é algo que invejo, e eu seguia-o até ao mato para apanhar espargos, cogumelos. Ele sabia quais os cogumelos que se podiam comer, quais os que não se podiam, quando é que cada fruto estava disponível”.

Segundo Pilar Adón, algumas pessoas tendem a adjetivar a natureza como “hostil” e a considerar que a natureza que descreve nos seus livros é perversa, mas rejeita essa ideia.

“A natureza é. E nós estamos nela, como parte dela, mesmo que vivamos de costas para ela”, acrescentou, manifestando grande preocupação com as alterações climáticas: “É algo que me surpreende, considerando os tempos da formação da Terra, da evolução, que numa geração, estejamos a assistir a isto. É um período de tempo muito curto e estamos a ver como o clima está a mudar, o que é muito preocupante”.

A história deste romance é como um pesadelo, mas descrito com uma linguagem lírica, quase como se a narrativa fosse um pesadelo poético, uma constatação que inicialmente a autora rejeitou, mas que com o tempo percebeu que de facto contaminava toda a sua obra e que atribui ao facto de ser também poeta.

“Mas acho que a minha narrativa contamina a poesia mais do que a poesia contamina a narrativa”.

“De Bestas e Aves” tem zonas escuras, que ficam em aberto, não totalmente esclarecidas, um recurso intencional da escritora, para criar um diálogo com o leitor.

“Obviamente, eu sei tudo. É óbvio que sei como são todas as personagens, de onde vêm e para onde vão. É a famosa teoria do icebergue: nós só vemos a ponta do icebergue, mas eu sei tudo sobre o gelo que está por baixo”.

Pilar Adón explica que gosta que o leitor leve a história do romance para o seu mundo.

“Se der tudo, o leitor já não pode participar em nada. Há pessoas que levam a mal, que não podem, ou não querem, participar em nada, mas a mim interessa-me que cada pessoa chegue à sua própria interpretação e a forma de o fazer é deixar espaço para que o leitor o faça”.