No segundo concerto em palcos nacionais este ano - depois de ter passado pelo NOS Primavera Sound, no Parque da Cidade, no Porto, em junho - e no primeiro na capital desde a atuação na Aula Magna, em 2011, Polly Jean Harvey confirmou, na noite da passada quinta-feira, que continua a ser figura de culto por cá - 24 anos após o lançamento do primeiro álbum, "Dry", que fez dela uma das maiores revelações dos anos 1990.

Numa sala que não esgotou mas cujo espaço da plateia pareceu repleto, a cantautora inglesa foi acolhida por um público dedicado e atento que dispensou, felizmente, os excessos de devoção que por vezes vincam outras atuações em solo luso. Sem burburinho intrusivo, palmas não convocadas nem overdose de telemóveis em riste, os espectadores deram às novas (e ocasionalmente antigas) canções o espaço que estas merecem, atitude mantida por uma artista e banda que não perderam tempo com outras palavras que não as das letras (excetuando a ocasião, quase no final, em que a cantora apresentou os músicos, entre os quais colaboradores de longa data como John Parish e Mick Harvey).

Apesar desta atmosfera de respeito pela partilha, PJ Harvey apresentou-se com uma postura bem menos solene do que a da sua visita anterior a Lisboa. Em vez de um longo vestido negro, envergou uma minissaia (também preta) a remeter para fases de outras décadas. Em vez da pose contida e até algo austera visível na digressão de "Let England Shake", manteve a teatralidade mas entregou-se várias vezes à dança e não recusou um contacto mais directo com espectadores, através de gestos e olhares.

Animal de palco? Também não chegou a tanto, não só porque não teve o protagonismo de outros tempos, dividindo o espaço com nove músicos, e sobretudo porque nem era isso que se esperava numa altura em que a performance não parece sequer querer impor-se às palavras - estas a originar relatos do estado do mundo centrados em viagens ao Kosovo, Afeganistão ou Washington, alavanca de "The Hope Six Demolition Project", o novo álbum.

E foi pelas novidades que a noite arrancou, com o misto de blues, folk e jazz que tem comandado a música de PJ Harvey nos últimos anos. Entre sopros, cordas, percussão e teclados, a cantora e a banda apresentaram "Chain of Keys", marcha comandada por coros e saxofone (o único instrumento que a britânica tocou), a imponência de "The Ministry of Defence" ou a mais melódica "The Community of Hope", boas portas de entrada para um disco que alarga o olhar sobre a realidade bélica (e as suas consequências) de "Let England Shake" (2011).

Além de traduzirem o equilíbrio de todos os músicos que marcou a atuação, estas canções iniciais sugeriram logo que o espetáculo dispensaria qualquer aparato cénico - ou quase, já que o muro de betão numa tela atrás do palco, cujos movimentos marcaram o início e o fim do concerto, foi o único complemento visual. E nem se sentiu falta de mais quando um alinhamento acima da média tanto correu o novo disco como recordou alguns dos anteriores.

De Inglaterra para o mundo

Sem surpresas, "Let England Shake" foi o registo mais revisitado e marcou uma das melhores sequências da noite, com "The Words That Maketh Murder", tão orelhuda quanto irónica e contundente, a belíssima "The Glorious Land", talvez o momento da nova fase de PJ Harvey que conjuga apelo melódico, relevância temática e peso emocional de forma mais sublime, e "Written in the Forehead", a tal que trouxe inesperados (e impensáveis?) ambientes reggae para este universo, através de um refrão tão forte como a carga política.

A proximidade conceptual e sonora dos dois últimos discos leva a que estas recordações recentes convivam sem deslizes com novidades na linha de "Dollar, Dollar", outro dos grandes episódios da noite. Retrato de uma viagem de carro de PJ Harvey pelo Afeganistão, juntou as imagens desenhadas pelas palavras da cantora ao trompete que ganhou protagonismo em palco e não foi menos do que arrepiante. Da história de um menino pedinte saltou-se para o apelo de "The Wheel" ("Hey little children, don't disappear"), que por sua vez não andou longe do de "A Line in the Sand" ("Enough is enough"), entoado mais atrás.

Se Harvey veste bem a pele de cantora de intervenção muito particular, e muito pertinente nos dias que correm, essa nem é necessariamente a sua persona mais apaixonante. O que está longe de ser um problema, apenas sintoma de uma artista que tem recusado repetir-se de álbum para álbum (ainda que os dois últimos sejam mais comparáveis do que o habitual no seu percurso) e conta com uma das discografias mais versáteis e aconselháveis das últimas décadas.

Mas de repente, ouvimos "50ft Queenie" e percebemos que um belíssimo concerto também poderia ter sido transcendente. Bastava apenas ter contado com outros episódios de vigor e urgência semelhantes, só que PJ Harvey parece pouco interessada em resgatar o seu inferno pessoal de paixões e ódios assolapados. Essa recusa do formato fácil e tentador de um best of ao vivo é de louvar, embora ainda tenha havido espaço para os clássicos "Down by the Water" e "To Bring You My Love", esta última especialmente conseguida, com a cantora a afastar-se do registo agudo que domina muito do material recente e a apostar na carga gutural dos seus primeiros dias.
Outras memórias, talvez menos óbvias (ainda que tenham feito parte de vários concertos da digressão atual), foram as de "To Talk To You" e "The Devil", do por vezes esquecido "White Chalk" (2007), cuja convivência com temas recentes não pareceu forçada.

E quem esperava por mais uma ou outra visita ao passado remoto no muito solicitado (e aguardado) encore teve de se contentar com "Guilty" e "The Last Living Rose" - a primeira uma das faixas que ficaram de fora de "The Hope Six Demolition Project", a segunda outro recuo até "Let England Shake". Não terá ficado nada mal servido de qualquer forma, mas lá está: com mais desvios das versões gravadas dos temas (seguidas com uma precisão quase cirúrgica) e com espaço para alguma ousadia e imprevisto no meio da inegável entrega e competência, o abanão musical e emocional teria sido outro.