"Vamos fazer uma viagem ao passado que já foi futuro". Assim apresentou Ana Deus, no arranque da noite, a revisitação do segundo - e mais emblemático - álbum dos Três Tristes Tigres. E de facto, há cerca de vinte anos, poucos discos nacionais pareciam apontar tão diretamente ao futuro como "Guia Espiritual" (1996), ainda hoje um ponto especialmente vanguardista da pop cantada em português, feliz exemplo de uma tapeçaria sonora desafiante à altura da eloquência das palavras (estas escritas por Regina Guimarães).

Reunidos na discoteca lisboeta após um primeiro reencontro no Teatro Rivoli, no Porto, em março passado, a vocalista e o guitarrista Alexandre Soares (que desde 2011 respondem como Osso Vaidoso) integraram uma formação que no palco incluiu ainda Quico Serrano (teclados e programações), João Pedro Coimbra (percussão e pads) e Rui Martelo (baixo).

"Há quanto tempo é que já não atuávamos aqui?", perguntou Ana Deus. "Parece que já foi há uns 30 anos", acabou por responder antes de se lembrar de um concerto de 1999 no qual estava "muito nervosa". Dois anos depois, os Três Tristes Tigres editariam a coletânea "Visita de Estudo" e não deixariam mais novidades.

Guia para um final feliz

O percurso de apenas três álbuns de originais, todos da década de 1990 - da pop de travo cabaret de "Partes Sensíveis" (1993) ao bem mais eletrónico "Comum" (1998) - pode ter sido curto mas também foi frutuoso, como a noite no Lux tratou de confirmar logo desde o início, com "Xmas", tema de abertura de "Guia Espiritual".

As primeiras duas canções do concerto mantiveram, aliás, a ordem do alinhamento do álbum mais elogiado da banda (e muitas vezes apontado como um dos essenciais do seu tempo), com "Ruído Rosa" a reforçar o protagonismo da guitarra face à versão original e a terminar com um ritmo frenético e desopilante, na linha do melhor rock alternativo de meados dos anos 1990 - toada que marcaria boa parte dos pontos altos deste reencontro.

A conjugação do elétrico e do eletrónico, que já era uma das forças e novidades de "Guia Espiritual" face ao antecessor, mostrou-se efervescente mais de 20 anos depois, mas a noite foi ainda melhor quando, em vez da conciliação, deu espaço ao braço de ferro entre guitarras e programações. Foi o caso do desvario progressivo e delicioso de "Kindergarten", da distorção à abstração instrumental, magnetismo comparável ao de "Missão Impossível" ou ao do remate avassalador de "Olho da Rua", esta uma das poucas canções que Ana Deus admitiu saber cantar.

Três Tristes Tigres

Munida de um bloco de apontamentos que não largou ao longo da atuação, no qual foi consultando o alinhamento e algumas letras, a vocalista assumiu o lado "intimidante e trepidante" deste regresso fugaz - mas não necessariamente irrepetível depois das passagens pelo Porto e Lisboa.
"Isto parecia perfeito na vossa juventude mas afinal não é assim tanto, não é?", questionou, dirigindo-se ao público (maioritariamente a rondar a casa dos 40) de uma sala bem composta. E se é verdade que numa ou noutra canção a sua voz entrou antes do tempo, isso pouco beliscou a intensidade invulgar com que se atirou a hinos como "Anormal" (com direito a repetição no encore), "Zap Canal" (entoada também por uma grande fatia do público) e sobretudo "O Mundo a Meus Pés", esta servida numa versão despida, só com guitarra a acompanhar, na única ocasião em que Ana Deus e Alexandre Soares estiveram sozinhos em palco.

Espécie rara

"Noites Brancas" e "Colchão de Água", já de si implosivas, reforçaram o mistério ao serem interpretadas por uma vocalista em modo contido, com o cabelo a esconder o rosto e o escarlate do longo vestido a condizer com as gotas de sangue do ecrã mais atrás. Mas o momento mais arrepiante talvez até tenha sido a (demasiado breve) revisitação de "Comum" através de "Espécie", canção ainda tão inimitável e indecifrável como em 1998. Só que agora ficámos a saber que há uma explicação para isso. "Estávamos com uma grande piela quando a gravámos", confessou Ana Deus, o que permite acrescentar o vinho tinto "bebido por todos" à lista de influências da banda. "Mas foi só nesta", assegurou.

Além de "Espécie", não teria sido nada mau recordar o último disco do grupo com "Linha Turva" ou "Falta (Forma)", embora a ausência mais inesperada da noite até tenha sido "Subida aos Céus", um dos clássicos de "Partes Sensíveis" - ainda que "Descapotável" tenha sido mais pedida por alguns espectadores no encore. Mas o pretexto do reencontro era mesmo "Guia Espiritual" e esta hora e meia com alguns extras fez-lhe inteira justiça.

Anos 90 bem medidos? Nem tanto, já que estas canções não parecem confinadas a uma cápsula temporal. Se na altura algumas estavam à frente do seu tempo, agora soam intemporais, com uma visceralidade e urgência que não compactuam com chantagens nostálgicas - pelo menos quando têm uma banda a defendê-las tão bem ao vivo. Assim faz sentido regressar.

Fotos: Zef Pinheiro