“Estamos numa época em que temos que falar de mestiçagem. Temos que falar da mistura dos povos, das culturas, porque é isso é que faz a base daquilo que acabou por ser a sociedade em que nós vivemos”, disse numa entrevista à Lusa o vencedor do prémio, com o romance “Siríaco e Mister Charles”.

“Há uma tendência em separar, em tentar procurar a pureza das raças, a superioridade das civilizações, mas isso não é verdade. Todos nós, no fundo, acabamos por refletir aquilo que está na nossa génese, que são as viagens nesta zona do Atlântico entre a Europa, África e Brasil”, acrescentou.

Anunciado esta madrugada vencedor da categoria prosa do Prémio Oceanos, Arena reforçou que a mistura de povos “acabou por fazer aquilo que o Brasil é, aquilo que estas sociedades crioulas são, que é o fruto do encontro de povos ao longo dos séculos.”

“Hoje vivemos num mundo que tenta, às vezes, encontrar divisões, separar politicamente. Temos a questão da imigração dos africanos para a Europa, que são vistos como invasores, temos a questão da extrema-direita, na Europa e também no Brasil, que tenta encontrar a pureza da raça para renegar o passado, mas no fundo isso tudo é uma falácia”, pontuou.

O romance “Siríaco e Mister Charles” narra uma amizade ficcional e improvável entre Siríaco, um velho negro, ex-escravo que sofria de vitiligo - e, por isso, era chamado de homem listrado e acabou levado do Brasil como uma aberração para a corte da rainha Maria I em Portugal - e o cientista britânico que criou a teoria da evolução das espécies, Charles Darwin.

É o terceiro romance de Arena, que estreou na literatura com “A Verdade de Chindo Luz” (2006) e também publicou “Debaixo da Nossa Pele” (2017).

“Com este livro, e com este prémio, Siríaco, que é o personagem principal do romance, regressa ao Brasil 200 anos depois. Regressa através das páginas do meu livro, regressa através da literatura,” afirmou Arena.

“Quando vi a imagem dele num quadro pintado há mais de 200 anos por pintor da corte, que pintou os anões brasileiros e africanos, ele estava entre eles, foi a figura que mais me atraiu. Fiquei sempre com essa ideia que um dia gostaria de escrever sobre ele”, completou.

Perguntado sobre o que sentiu ao ser primeiro escritor nascido em Cabo Verde a vencer o Prémio Oceanos, Arena, que se autodetermina luso cabo-verdiano, considerou que o concurso literário pode ajudar na circulação de obras de autores que, como ele, não estão publicados no Brasil e em todos os países da lusofonia, mas defendeu que a literatura não tem uma relação direta com as nacionalidades.

“Nós escrevemos e somos lidos por pessoas brasileiras, portuguesas, cabo-verdianas e outras pessoas que leem na nossa língua. O facto de ser cabo-verdiano tem um lado que pode ser interessante porque estou a viver em Cabo Verde desde 2017, cresci em Lisboa, mas de qualquer forma tenho uma ideia da literatura como algo transversal às nacionalidades e as regiões”, explicou.

“Mas, sim, de facto, fico contente também porque Cabo Verde é um país pequeno e se isso puder atrair a atenção de outras pessoas para esse pequeno país, para a literatura que se faz aqui, acho que isso [vencer o prémio Oceanos] é bom e importante”, concluiu o escritor.

O embaixador de Portugal no Brasil, Luis Faro Ramos, participou do anuncio dos vencedores do Prémio Oceanos, na sede do Itaú Cultural, em São Paulo e, depois de revelar que o romance de Arena venceu a categoria prosa do concurso literário, felicitou o autor.

“A língua é de quem a fala, a língua é de quem escreve e, são todas as escritoras e escritores que escrevem em português, em língua portuguesa, que enriquecem a nossa língua todos os dias e, por isso, muito obrigada pela contribuição que está a dar para o engrandecimento da língua portuguesa”, disse.

Em 2023, os organizadores do Oceanos dividiram as inscrições em duas categorias: prosa (que também incluiu obras de dramaturgia) e poesia. Os autores selecionados nessas categorias foram avaliados por dois júris diferentes.

Entre 1.466 obras de prosa que participaram do concurso literário, foram selecionadas 20 semifinalistas e depois, entre esses, cinco obras finalistas: “Siríaco e Mister Charles”, de Arena, “A história de Roma”, da portuguesa Joana Bértholo, “Misericórdia”, da portuguesa Lídia Jorge, “Naufrágio”, do português João Tordo e “A última lua de homem grande” do cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa.

O Oceanos é realizado por via da Lei de Incentivo à Cultura pelo Ministério da Cultura do Brasil, e conta com o patrocínio do Banco Itaú e da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas da República Portuguesa, com o apoio do Itaú Cultural, do Ministério da Cultura e do Turismo de Moçambique, do Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde e o apoio institucional da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.