A vida de Elza Soares dava um fado. Aliás, vários, já que ao longo dos seus 79 anos a cantora brasileira não teve falta de episódios rocambolescos, muitas vezes trágicos: casamento aos 12 anos, a primeira gravidez aos 13, uma rotina conjugal conturbada ao lado do futebolista Garrincha (que incluiu situações de violência doméstica) ou a morte de quatro filhos foram o que se seguiu a uma infância marcada pela pobreza. Mas em vez da história da desgraçadinha, de canções carregadas de pesar e sofrimento, Elza opta por aquilo que tem sido descrito como samba sujo. Sobretudo em "A Mulher do Fim do Mundo", o seu mais recente álbum de originais e o primeiro da sua longuíssima carreira constituído apenas por temas inéditos.

Mais do que de catarse, o álbum premiado com um Grammy Latino é de celebração. "Eu quero cantar, me deixem cantar até o fim", pede - ou exige? - a artista na faixa título. E na verdade não pede muito mais enquanto deixa relatos da vida nas favelas, contando não só parte da sua história mas também parte da história do Brasil das últimas décadas.

"Eu quero ouvir barulho pra chuchu", disse a cantora ao surgir no palco de um Coliseu dos Recreios repleto, naquele que foi o seu terceiro concerto em Portugal esta semana - depois de atuações no Porto e em Aveiro. A celebração tem de continuar e não é por estar sentada durante todo o espetáculo, no alto da sua cadeira - devido a problemas de saúde -, que Elza deixa de ser uma empenhada instigadora da festa perante um público "altamente fixe". Acompanhada pelo grupo de cinco músicos de São Paulo com o qual gravou o último disco ("os meus irmãos moleques"), a cabeça de cartaz do segundo dia do festival ofereceu uma fusão de MPB, rock, jazz, funk ou eletrónica, ingredientes do tal samba negro e provas de que a veterania nem sempre é sinónimo de comedimento ou comodismo.

De resto, não é qualquer senhora da sua idade que arrisca chamar "Pra Fuder" a uma das novas canções, tendo o mérito acrescido de não a tornar minimamente alarve apesar de repetir o título várias vezes. A ode aos prazeres da carne vem embalada, como muitos outros temas da noite, numa sonoridade mutante e mestiça, enérgica e por vezes imprevisível, para a qual contribuiu a mestria da banda, que acompanha uma voz vivida e ríspida com instrumentação igualmente desalinhada e rude - o resultado chega a lembrar, com as devidas distâncias, a ousada transfiguração de Neneh Cherry em "Blank Project" (2014).

Entre os momentos que mais vincaram a constante comunhão artista-público ficam o grito contra a violência doméstica de "Maria da Vila Matilde". "Levantou a mão? Denuncie", apelou Elza, depois de assinalar que esta era uma canção "muito importante para as mulheres". "Você vai se arrepender de levantar a mão para mim", entoada alternadamente pela cantora e pelo público, foi talvez a frase que marcou a noite. "Gemer, só de prazer", acrescentou a brasileira, numa das muitas tiradas de antologia de um espetáculo que também abordou o racismo em "A Carne" ("A carne mais barata do mercado é a carne negra").

Que Elza Soares tenha sido capaz de abordar temas sérios, de forma séria mas não sisuda, enquanto envergava uma volumosa peruca roxa e um vestido negro, brilhante e futurista q.b., praticamente imóvel, é só mais uma das singularidades de um concerto que, como ela, não se parece com nada. Elza Soares está parada, mas não calada: deixem-na gritar, deixem-na cantar.

Hip-hop don't stop

Estranho caso, o dos Digable Planets. Quando muitos os julgavam uma memória já praticamente esquecida algures nos anos 1990 - durante os quais editaram dois álbuns -, os rappers radicados em Brooklyn, Nova Iorque, vivem agora a sua terceira encarnação (mantendo a formação inicial) depois de terem regressado ao ativo no ano passado. Através de canções como "Rebirth of Slick (Cool Like Dat)", "Where I'm From" ou "It's Good to Be Here", todas revisitadas na atuação no Cinema São Jorge, o trio foi um dos principais nomes (juntamente com os Dream Warriors ou os Gang Starr) de um hip-hop elegante e consciencioso, arejado e otimista, fortemente ancorado no jazz - de onde provinham muitos dos samples dos seus temas.

Nada mais justo, por isso, que essa herança seja celebrada numa altura em que Kanye West ou Kendrick Lamar são a cara de muitas manchetes, sintoma de um apogeu do hip-hop que se julgaria impensável há duas décadas. Ainda assim, não deixa de ser surpreendente que o projeto de Ishmael "Butterfly" Butler, Mary Ann "Ladybug Mecca" Vieira e Craig "Doodlebug" Irving tenha atraído um público maioritariamente jovem à sua atuação do Mexefest, num regresso que foi mais uma descoberta para novas gerações do que um encontro de saudosistas que atravessavam a adolescência na altura em que "Reachin' (A New Refutation of Time and Space)" (1993) chegou às lojas.

Como diria Elza Soares, aqui também não faltou "barulho pra chuchu". Não só graças a temas como "Graffiti" ("Noise, noise, noise", repetiu a banda), mas sobretudo pelo reforço de cinco músicos que acompanharam o trio - no baixo, guitarra, bateria, piano e percussão - e deram a estes relatos uma sonoridade mais encorpada. E também quase mais rock do que hip-hop a espaços, em particular nos devaneios instrumentais em que os rappers se resguardaram para darem oportunidade aos músicos de terem o seu momento. O gesto ficou-lhes bem, embora este músculo tenha ofuscado demasiadas vezes as palavras, parte essencial da personalidade dos Digable Planets e por vezes reduzida a mais uma camada sonora ao vivo.

"Os álbuns são bué smooth, o concerto nem por isso", comentava um fã com os amigos à saída, reconhecendo o virtuosismo da banda mas não disfarçando a ligeira desilusão no salto do disco para o palco. De qualquer forma, não faltaram aplausos ao longo desta hora, numa sala muito bem composta e com boa parte do público de pé e a aceder ao convite à dança várias vezes feito pelos rappers. Mais vale tarde do que nunca, mesmo que não da forma que alguns esperavam.

Antes da senhora, as Señoritas

"Queres entrar?", perguntaram as Señoritas depois de uma introdução ao seu concerto no Cinema São Jorge, na qual recordavam acelerações e travagens "no banco de trás". Apetece rebater com um "Então não?", tendo em conta que estamos a falar de uma das melhores estreias nacionais deste ano, com o disco "Acho que é meu dever não gostar".

O projeto que junta Mitó Mendes e Sandra Baptista depois de A Naifa ter sido esquartejada mantém a herança da música tradicional portuguesa, às vezes quase fadista, da banda anterior, mas reforça a carga rock, ou pós-punk, que também já habitava algumas canções dessa fase. Mas esta dupla parece estar bem mais à vontade na sua nova vida, liberta da pose mais formal, visível logo na indumentária com que se apresentou em palco - e em especial nas minissaias negra e prateada. Esse sentido de liberdade também se respira nas letras, agora com as farpas, inquietações e confissões destas duas mulheres em vez das palavras de outros.

O espectro move-se entre a culpa e a superação, o sagrado e o profano, a vida e a morte ou os casamentos e os funerais, até porque os funerais são os casamentos dos mortos, ou assim cantou Mitó, a lembrar que a comédia mora ao lado da tragédia. Sandra acompanhou-a no baixo ou no acordeão que já vem dos tempos dos Sitiados (alguém diz que já passaram quase 30 anos ao olhar para ela?), mas esse acessório não foi a única memória da banda criada por João Aguardela ao longo da noite, já que um dos momentos altos chegaria com a arrepiante versão de "Amanhã".

Se Sandra cantou ocasionalmente, acompanhando Mitó, a ex-vocalista d'A Naifa também teve oportunidade de se ocupar de alguns instrumentos, caso do xilofone, percussão e guitarra. "Consegui finalmente concretizar três desejos: fazer música com a Sandra, tocar um solo de guitarra e tocar um solo de guitarra de uma só nota", revelou na reta final do concerto, mostrando-se ainda surpreendida com a considerável adesão a um espetáculo "logo às oito da noite". Mas quando o disco convence, a atuação não lhe fica atrás e o tema inédito apresentado segue esses passos, achamos que é nosso dever não faltar.

A inaugurar uma noite de várias surpresas no feminino, Meg Baird abriu a série de concertos na Sociedade de Geografia de Lisboa, um dos espaços mais bonitos do Mexefest (o que não é dizer pouco quando um dos méritos do festival é dar a conhecer algumas salas pouco aproveitadas para espetáculos). E também não faltou beleza à sua música, uma folk ancorada numa voz maleável, doce mas não em demasia (a lembrar Lori Carson ou Dawn Landes), e numa guitarra que chegou para encher um palco (às vezes tendo outro músico como companhia).

É por artistas como esta norte-americana que vai valendo a pena subir e descer a Avenida da Liberdade ao longo de duas noites em finais de novembro, e mesmo quando o cartaz não é o mais competitivo há sempre descobertas a fazer ao entrar numa nova sala. No sábado, a noite também e fez com a música dos TaxiWars, Mayra Andrade, Kevin Morby, Whitney, Mallu Magalhães ou Branko, a fechar. E nesse dia e na véspera, cerca de 15 mil pessoas circularam pelos 15 espaços de concertos, avançou a organização do Vodafone Mexefest. Só se dispensava a chuva como convidada extra da segunda noite, que mesmo assim não parece ter demovido a itinerância que para muitos já será um ritual.

Foto: Diogo Inácio/World Academy/Vodafone Mexefest