Quando há coisa de onze meses e uns dias Portugal foi campeão europeu por via de um inesperado pontapé de um herói improvável, até a minoria que, no nosso país, não gosta do jogo da bola, se emocionou e festejou e achou que alguma coisa tinha mudado. Agora imaginem um mundo ao contrário: uma minoria que gosta de facto de alguma coisa (a Eurovisão) vê um inesperado e alargado número de pessoas que anda há anos a desprezar a dita coisa, a emocionar-se, a torcer, a comentar um herói improvável que até vai no bom caminho para fazer boa figura.

"Gostar da Eurovisão é ter plena consciência da irracionalidade que é gostar deste espetáculo e, no entanto, a paixão pelo fenómeno ser mais forte."

Gostar da Eurovisão não é só ligar a RTP para nos ver na meia final e, se tudo correr bem (não corria há sete anos), ver a final com a camisola vestida e não apenas emprestada por outro país. Não interessa que tudo aquilo se esforce por ser o cúmulo do "kitsch" num palco absurdamente grande. Não interessa que a maior parte das canções seja uma variação pop medíocre do que está na moda, cantada num inglês macarrónico e interpretada sofrivelmente. Não interessa mesmo a sombra geopolítica da coisa que enviesa resultados e faz com que o mote deste ano na Ucrânia (“Celebrate Diversity”) seja mais uma alfinetada à vizinha Rússia do que propriamente um credo abraçado com convicção.

E aqui chegamos ao futebol. Gostar da Eurovisão, descobri eu, é acompanhar os treinos, as entrevistas, as conferências de imprensa (antes e depois), a chegada ao recinto, a evolução da nossa equipa nas casas de apostas. É seguir os comentadores da especialidade, trocar opiniões com outros fãs, saber o nome dos outros jogadores, se é melhor a música ou a interpretação, onde jogaram (cantaram, desculpem) antes, se já tinham tentado e falhado ou se estão a estrear-se. É ter plena consciência da irracionalidade que é gostar deste espetáculo e, no entanto, a paixão pelo fenómeno ser mais forte. Até porque só com paixão se pode ter autoridade para criticar o rapazinho australiano que desafinou, o rapaz da trança que parece a Lara Croft, as cantoras a tentar disfarçar os nervos com habilidades vocais. "Piano e saxofone em palco? É tudo playback!" "Mas quantas canções chamadas'Blackbird' é que há no mundo?" "E as botas da moça da Letónia? Aquilo sim, é que são botas.” E ainda saber algumas letras de cor.

"Chama-se Salvador e é português. E se, para a tal maioria que já só espera a Eurovisão todos os anos para dizer mal, é uma surpresa agradável e motivo de orgulho, para quem vive a coisa com paixão, é mais que um Euro 2016, mais que um Éder a rematar à baliza."

No meio disto tudo, um rapazito um bocado deslocado, de canção bonita e voz afinada, desprezando o palco demasiado grande e optando por uma simplicidade desajeitada, conquista votos e ouvidos. Chama-se Salvador e é português. E se, para a tal maioria que já só espera a Eurovisão todos os anos para dizer mal, é uma surpresa agradável e motivo de orgulho, para quem vive a coisa com paixão, é mais que um Euro 2016, mais que um Éder a rematar à baliza. É a emoção de um sonho realizado.

Quando o nome de Portugal foi anunciado como passando à final, gritou-se como se fosse golo. É um triunfo no mais irrelevante dos cenários mas com a mais sincera das emoções - exatamente como no futebol. “Eu tive uma visão mística de que ele vai ganhar”, disse alguém. “Eu sonhei que ele ia cantar com a irmã à viola, depois de ganhar", disse outro. E até o mexicano, incrédulo com tudo isto, confessou que se calhar a canção mais bonita até era a portuguesa.

Venha a final, no Sábado. Lá vai estar a Itália, a favorita, e alguns dos nossos eternos nemesis da bola: a França e a Grécia.

Luis Soares

Luís Soares é escritor e a primeira final da Eurovisão de que se lembra é a da Manuela Bravo. Tem saudades do Eládio e da Ana Zanatti.