Quando David Haller surgiu nas páginas de New Mutants #25 como personagem secundária, em março de 1985, ninguém anteciparia que Legião, o seu nome de código, viria a ser a primeira aposta de uma série televisiva em imagem real dos mutantes da Marvel (depois de várias de animação desde os anos 1990).
Mas até faz sentido que "Legion", a produção que estreou a 8 de fevereiro no FX, nos EUA, e chegou a Portugal através da FOX, na passada segunda-feira, marque o início da expansão do universo dos X-Men no pequeno ecrã. Se David Haller já era uma carta fora do baralho nas aventuras de super-heróis tradicionais, Noah Hawley, responsável pela adaptação da série (ele que levou "Fargo" para a TV nos últimos anos), garante que esta jornada não é mais do mesmo face ao que temos visto nas aventuras cinematográficas de Wolverine, Ciclope e companhia.
O tom menos formatado do episódio piloto, que opta por explorar o universo interior do protagonista em vez de combates megalómanos, estará mais próximo do labirinto onírico de uma série como "Mr. Robot" e da sensibilidade visual de Stanley Kubrick ou Wes Anderson, referências assumidas do showrunner e comparações habituais nas primeiras (e muito entusiastas) críticas à produção.
Essa viragem, no entanto, já vem de trás, desde que Charles Xavier, o mentor dos X-Men, descobriu que tinha um filho fruto do seu relacionamento com Gabrielle Haller, embaixadora de Israel no Reino Unido. A revelação foi feita nas páginas da revista de New Mutants, a primeira equipa de mutantes descendente dos X-Men (à qual se seguiriam X-Factor, Excalibur ou X-Force), e o arco que apresentou David Haller está entre as fases mais elogiadas.
O argumento de Chris Claremont mergulhou nos interstícios da mente humana através das múltiplas personalidades de um adolescente invulgarmente poderoso e perigoso, alternando entre o estado catatónico e a instabilidade psicológica enquanto tentava lidar com as suas capacidades telepáticas, telecinéticas e pirocinéticas. Mas os desenhos de Bill Sienkiewicz foram ainda mais arrojados, recusando a estilização de figuras curvilíneas e anatomicamente perfeitas associada a boa parte das aventuras de super-heróis. Em vez disso, o artista norte-americano quase afogou as personagens em borrões de cor expressionistas, com ilustrações que nasciam muitas vezes de colagens ou pintura a óleo, invulgares numa revista de banda desenhada mainstream.
Se nestas primeiras histórias dos Novos Mutantes a participação de Legião foi uma forma de levar mais longe, e a cenários mais extremos, a abordagem à diferença e às dores do crescimento habituais na revista, outras aparições da personagem utilizaram-na como pouco mais do que muleta do argumento. Foi o caso da Saga da Ilha Muir, quando David surgiu controlado pela entidade maligna Rei das Sombras e colocou mutante contra mutante, embora a sua contribuição para a Era de Apocalipse tenha sido mais trabalhada. Nessa história que ficou entre os marcos dos comics dos anos 1990, o filho de Charles Xavier viajou no tempo para assassinar um jovem Magneto, mas acabou por matar o pai acidentalmente e criar uma realidade alternativa que afetou todos os títulos da linha mutante da Marvel.
Mais recentemente, Legião teve finalmente um papel protagonista na revista X-Men: Legacy, entre 2012 e 2014. Nas aventuras escritas por Simon Spurrier e desenhadas por Tan Eng Huat, David continuava a tentar dominar os seus poderes, com mais sucesso do que o habitual, enquanto lutava por fazer jus ao legado do pai na defesa dos mutantes.
Em "Legion", David não nos é apresentado como o único sobrevivente de um ataque terrorista em Israel, ocasião que despertou os seus poderes latentes na revista New Mutants, mas como prisioneiro de uma instituição psiquiátrica nos EUA da década de 1960. Esta não é a única diferença face ao material de origem de uma adaptação muito livre, que à partida não convoca outras personagens conhecidas do universo mutante nem força ligações aos muitos filmes dos X-Men.
A própria fisionomia de Legião é bastante diferente, aqui encarnada por Dan Stevens, conhecido por séries como "Downton Abbey", "A Linha da Beleza" ou o filme de culto "The Guest". A figura do ator britânico é bem menos radical do que a da personagem esguia e de cabelos eriçados e volumosos da BD, mudança que vai de encontro à variação mais polida que o arranque da série propõe. Mas embora menos visceral do que as origens de David Haller nos comics, "Legion" não deixa de ser uma experiência alucinante, tendo em conta o cuidado perfecionista na realização, produção e direção artística.
A visão do showrunner David Hawley, sendo distinta da de Chris Claremont e Bill Sienkiewicz, respeita o lado esquivo (ainda que não tão esquizofrénico) associado à personagem e tem uma energia visual muito acima do que contramos nos últimos blockusters de super-heróis, desviando-se de concentrados de pirotecnia ofuscante e integrando os efeitos especiais no storytelling. Basta conferir a primeira sequência, um pequeno prodígio de economia narrativa, ou a cena com um beijo mais inventiva nestes meandros desde "Homem-Aranha", de Sam Raimi. Mutatis mutandis, a expansão televisiva dos X-Men começa bem...
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