Baseado no argumento de Mark L. Smith, trabalhado durante cinco anos pelo consagrado realizador mexicano Alejandro González Iñárritu, "The Revenant: O Renascido" faz-nos recuar 200 anos e coloca-nos perante uma América inexplorada e selvagem, numa composição que é um clássico moderno de um filme de fronteira.

Inspirado na lendária história de sobrevivência de Hugh Glass, um explorador notável, exímio caçador e comerciante de peles que é abandonado e dado como morto por membros do seu grupo após ter sido atacado por um urso pardo, o filme introduz outros elementos ficcionais, como a relação de Glass com o seu filho mestiço.

A crueldade de que o rapaz será vítima fará Glass interrogar-se se a vingança será suficiente para sarar a ferida aberta. A intromissão de memórias de um passado traumático, pintado em tons surrealistas, e onde há laivos de Terence Malick, acrescenta uma maior densidade à ação. A história de vingança é o ponto de partida para percorrer cenários remotos, reais e usualmente afastados do grande ecrã na era do digital onde as filmagens com luz natural e a rodagem em sequência cronológica – do Outono a um Inverno rigoroso –, trazem à tela muito gelo, nevoeiro, chuvas e nevões que não são fictícios. Estas condições extremas foram um verdadeiro tour de force para o elenco e a produção mas um deslumbre para o nosso olhar.

"The Revenant" deixa o poder das imagens falar por si. Ficamos siderados com este recuo aos primórdios do cinema. Vem à memória a ingenuidade do épico "Tabu", de F.W. Murnau, ou, mais recentemente, "As Brancas Montanhas da Morte" (1972), de Sydney Pollock, mas é o "Novo Mundo", de Terence Malick, o filme que não só em termos visuais mas também temáticos mais se aproxima deste relato que retrata o fim da inocência no cruzamento do homem branco com os nativos americanos e explora o diálogo com a natureza. Além disso, e não é um pormenor, "The Revenant" partilha o mesmo diretor de fotografia, Emmanuel Lubezki.

Parco em palavras, o filme espelha a relação do homem com a natureza em ações que têm ressonância na sociedade moderna. Passados quase 200 anos, observamos práticas que ainda são comuns no nosso mundo: o consumismo desenfreado, a xenofobia e o desrespeito pelo meio ambiente. Alejandro González Iñárritu filmou e retratou os nativos americanos com dignidade, estes não são os típicos índios retratados pelo cinema clássico, não são os “maus da fita” nem motivo para o velho dualismo “índios versus cowboys”. Neste caso são seres humanos, com a sua agenda própria e com divisões profundas entre as várias tribos. A sub-trama deste filme gira em torno dos nativos e envolve um rapto, aspeto que é também baseado em factos verídicos.

O filme faz-nos embarcar na viagem de Hugh Glass sobre os limites da chacina, coloca-nos junto com a personagem no centro da espiral de violência, mas é nesse centro, no olho do furacão, que o perdão se mostra como força redentora. A obra não faz disso uma bandeira e não serve para nos dar lições de moral mas está omnipresente o peso dessa questão no final desta jornada épica. O que se inicia como uma viagem de vingança torna-se uma obra de redenção.

As condições ambientais rigorosas em que os atores trabalharam contribuíram de certa forma para adicionar mais ímpeto e até um lado visceral às performances. Tom Hardy está novamente brilhante como John Fitzgerald, um pragmático ignorante que apenas quer salvar a sua pele – mais uma vez tiramos o chapéu ao brilhantismo do argumento ao evitar retratar o personagem de modo maniqueísta.

Domhnall Gleeson também dá cartas com seu desempenho como o líder da expedição, o Capitão Andrew Henry que segue a honra e o dever perante homens preparados para fazerem tudo. Gleeson é um ator a seguir no futuro, especialmente se tivermos em conta o seu desempenho em "Star Wars: O Despertar da Força".

Mas a verdade é que todos ficam distantes da performance imperial de Leonardo DiCaprio. A sua entrega ao personagem é total. Mesmo com poucas linhas de diálogo, tudo assenta na forte presença física e na intensidade do seu olhar. Se o Oscar lhe fugir teremos em mãos um caso de polícia.

À semelhança de "Birdman", o último trabalho de Alejandro González Iñárritu em conjunto com Emmanuel Lubezki, o seu diretor de fotografia, "The Revenant" também é uma obra a duas mãos. Iñárritu e Lubezki são dois artistas visuais em perfeita sintonia, as técnicas de uma câmara deambulante em cima dos personagens e que nos leva ao amago da ação e das emoções contemplando o espaço a 360 graus advém muito deste “mestre da luz” que é Emmanuel Lubezki.

"The Revenant" dificilmente poderia ter sido produzido com outro realizador (rodar numa centena de localizações em regiões remotas durante um ano?!), no entanto a coragem do estúdio é premiada por um triunfo magistral do cinema. "The Revenant" é um intenso espetáculo visual e um testemunho da coragem humana face às enormes contrariedades da vida.