A HISTÓRIA: Marcello Mastroianni, alter ego de Fellini, interpreta Guido Anselmi, um realizador a atravessar uma crise de inspiração. Durante a estadia numas termas, todos os seus fantasmas lhe aparecem, como que em sonhos, misturados com as pessoas reais que frequentam o local ou que o vêm visitar: familiares, atores, produtores e até críticos. Como não consegue encontrar soluções para o seu próximo filme, Guido abandona-se às recordações de infância e a sua imaginação divaga. E quando já se prepara para abandonar o projeto, todas as personagens lhe voltam a aparecer. Guido junta-as todas e dá a ordem de filmar.

"Fellini 8 1/2". Reposição nos cinemas a 20 de agosto.


Crítica: Hugo Gomes

Em "Fellini 8 1/2", aos 43 anos, o realizador contempla-se (e privilegia-se, digamos assim) com a capa fictícia de Guido (interpretado por Marcello Mastroianni, quem mais?) para o ajudar a refletir sobre o seu percurso e sobre a relação com o cinema que o envolve. Através dessa figura nasce o sempre enigmático “8 ½”, uma autobiografia de foro extensivamente existencial sobre um realizador num perplexo conflito de inspiração.

No centro desta procrastinação, surgem as mulheres, um signo que o remete para os mais variados desejos, sejam lascivos, amorosos ou simplesmente invocações do seu “amarcord” (o equivalente italiano a ‘saudade’, neste caso de casa, Rimini, aquela praia e aquele assombrado refúgio da figura de Saraghina).

Sim, o feminino é o centro vital da vida de Guido e consequentemente dos atalhos memoriais do próprio Fellini, que concede “8 ½” como o auge do seu palanque felliniano, o estilo que compõe e liberta no auge da indústria italiana, proclamando como seu por direito.

Fellini 8 1/2 (1963)
Fellini 8 1/2 (1963)

Três anos após “A Doce Vita”, onde esmiuçava um estilo de vida romanesco e claramente burguês, Fellini continou a sua demanda pelas futilidades e pelas vontades inconsumíveis do ser mais insaciável, nós. O “eu” artístico não é mais que uma desculpa para alcançar essa genealogia da mortalidade.

Mas voltando ao dito “felliniano”: é o onirismo provocatório que alicerça a fantasia masculina e insegura de Guido, os contornos que colocaram esta obra na vanguarda do seu autor. A partir daqui, a relatividade do adjetivo criado adquirirá a sua aura e perderá para sempre a sua fisicalidade. Por outras palavras, foi com “8 ½” que o intrínseco do sonho molhado é experimentado e superado na sua mais devaneia forma. O resto, digamos, a carreira de Fellini, pairou no limiar da fronteira deste território com outros desejos na mente, como o de escapar à sua própria realidade. As memórias não serão esvaziadas totalmente aqui, continuarão anos largos e em outras produções de respeito da pauta de Fellini (entre as quais, “Amarcord”, lançado dez anos depois).

Mas voltemos ao universo estabelecido em “8 ½”, pondo de parte as “sequelas” causadas por esta introspeção. O filme assume-se como um bloco de palavras soltas, reorganizadas na tendência de um homem de chicote (literalmente) e é através destas mesmas palavras, diríamos decifradas por sequências e personagens passageiras, que o espectador se move em direção à “obra mestra”. O mono arquitetónico que culminará com a verdadeira fuga do artista: “para os produtores, um filme falhado é um fator económico, para o realizador representa a beira de um fim”.

Já aqui, desenhava-se a força motora da indústria cinematográfica italiana, dos lentos mas contínuos processos de rivalidade (ou diluição) com Hollywood que, por um lado o iriam guiar para a sua decadência, nunca mais contrariada desde o final de 70. Mas por enquanto, Fellini interage com o seu lugar no cinema e cria a sua própria parábola.