Viver - Ikiru
A HISTÓRIA: Kanji Watanabe, funcionário municipal é informado que tem um cancro e que só lhe restam três meses de vida. Reconhecendo o vazio que foi a sua vida, Watanabe empenha-se na transformação de um terreno baldio num parque onde as crianças possam brincar, um projecto ao qual destina todas as suas forças.
"Ikiru – Viver": reposição nos cinemas a 1 de outubro.
Crítica: Hugo Gomes
Espreitar o Ocidente sob a lente oriental foi um dos "modus operandi" de Akira Kurosawa na sua jornada pelo estatuto de “maior dos cineastas japoneses”, como se constata pelos diferentes géneros profundamente americanos que “contaminavam” as suas incursões populares até às inspirações literárias e dramaturgicas, que iam de Shakespeare a Dostoyevsky e até Tolstoy, de onde origina parte deste “Viver – Ikiru”.
Este filme de 1952 tem como contexto o "boom" sócio-económico do Japão pós-Segunda Guerra Mundial, olhado como a primazia da burocracia, e o impacto que este sistema tinha (e tem) na vida social e pessoal dos seus cidadãos.
Fora das bandejas neorrealistas e de foro político-social, “Viver” é a história de um velho funcionário público que de sábio nada tem: Kanji Watanabe (Takashi Shimura, um dos colaboradores recorrentes de Kurosawa) está reduzido a uma mera secretária cujo grande orgulho é o de nunca ter faltado, um dia que seja, ao seu serviço durante 30 anos, mas que altera radicalmente a sua perspetiva de vida após lhe ser diagnosticado um cancro no estômago.
A forma como este ancião viúvo encara essa notícia e os dias que lhe restam varia ao longo da narrativa, partindo numa autodestruição entre bebidas, festas e mulheres, para chegar à redenção quando se envolve na conceção e construção de um parque público.
Tal como Kanji Watanabe deambula no pêndulo da sua vida, "Viver" tende a moldar-se conforme a ocasião: começa como uma abordagem emotiva e pessoal, com a voz off que antecipa o seu destino, enquanto uma segunda parte é conduzida por relatos de terceiros que tentam apurar como foram os seus derradeiros momentos (um exercício muito ao estilo do seu anterior e incontornável “Rashomon: Nas Portas do Inferno”).
Quanto mais próximo do "kanji", que se traduz por "fim", o filme retrai as suas garras quanto às críticas à própria estrutura burocrática, libertando-se pelo drama humano, nas decisões estéticas de Kurosawa para transmitir o estado de espírito do ancião (a neve adquire um manto poético que cobre a Morte) e o expressivo Takashi Shimura a condensar toda uma vida descartável que debate, em modo de epifania, a sua miserável existência.
"Viver – Ikiru" não é apenas uma obra para se ver, mas sim, ao contrário do que fazia o seu protagonista, para se viver. Se possível, no grande ecrã...
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