A peça foi concebida no âmbito da programação paralela da exposição “Europa Oxalá”, sobre as temáticas do futuro pós-colonial, inaugurada em março deste ano na Fundação Gulbenkian, e que ficará patente até segunda-feira.
Tendo como ponto de partida o encontro da artista com uma coleção de 35 crânios humanos, dispostos num armário do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, “Fanun Ruin” (“Chamar Ossos”, tradução do tétum para português) prolonga a reflexão sobre o passado colonial e o seu efeito no presente.
Nessa linha, propõe o debate em torno das questões de memória, da identidade e do luto, partindo de acontecimentos ligados também à família da atriz e diretora artística do Teatro Griot, em Lisboa.
“Timor. Em 1959, um grupo de timorenses revolta-se contra o regime colonial. São presos e desterrados – durante vários dias viajam no vapor ´Índia´ para um destino que desconhecem. Um desses homens é o meu pai”, recorda, na sinopse da performance, que terá lugar às 19h30 nos dois dias.
E acrescenta: “Angola. Homens com rostos desfocados. A fotografia mais antiga que tenho é a do meu pai com os companheiros na cadeia do Bié. Foi no Bié que o meu pai conheceu a minha mãe”.
Na sinopse alude ainda ao encontro com os restos mortais na Universidade de Coimbra: “Portugal. Trinta e cinco crânios usurpados. Em 1882, na parte oriental da ilha de Timor, têm lugar os ritos de caça de cabeças, exortados pelos invasores portugueses. Trinta e cinco crânios desses corpos decapitados foram desterrados para Portugal”.
“É no confronto com a morte sem rosto que irrompe a utopia de dar carne aos ossos, de desfigurar a arquitetura do arquivo, de trazer à boca a palavra que edifique a casa onde por fim se possa repousar”, considera, no texto, Zia Soares, abordando a memória de acontecimentos do período colonial.
Em palco, lança as perguntas: “Como eram os rostos dos decepados? Onde estão os restos dos corpos? Quando retornam os ossos usurpados? Quem os espera? Quem ainda se lembra? Quem quer esquecer? Como encarnar os ossos? “.
Com autoria, direção e interpretação de Zia Soares, a peça tem direção de arte de Neusa Trovoada e cocriação de vídeos de António Castelo.
O elenco de vídeo é composto por Agostinho de Araújo, Aoaní Salvaterra, Domingos Soares, Fátima Guterres, Lídia Araújo, Lucília Raimundo, Manuel de Araújo e Priscila Soares.
Nascida no Bié, Angola, em 1972, Zia Soares passou pelo ballet e percussão com a Companhia Nacional de Ballet da Guiné-Bissau, pelas artes circenses com a Amsterdam Balloon Company, pelo teatro com a Companhia de Teatro “Os Sátyros”, de São Paulo, Brasil, e foi uma das atrizes fundadoras do Teatro Praga, onde trabalhou de 1994 a 2000, como diretora, encenadora e atriz.
Trabalha regularmente em Portugal, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.
Em 2018 e 2019 criou e dirigiu as performances produzidas e interpretadas por mulheres negras “Gestuário I” e “Gestuário II”.
Em cinema trabalhou com Pocas Pascoal, João Botelho, Pedro Filipe Marques, Uli Decker e Romano Casselis, e tem colaborado em projetos dos artistas visuais Kiluanji Kia Henda, Mónica de Miranda e Neusa Trovoada.
Zia Soares é uma artista apoiada pela Apap - Feminist Futures, um projeto cofinanciado pelo Programa Europa Criativa da União Europeia.
A produção de "Fanun Ruin" é da Fundação Calouste Gulbenkian e da SO WING, com apoio do Centro Cultural da Malaposta e do Polo Cultural Gaivotas Boavista.
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