Um terço dos brasileiros é evangélico, um terramoto religioso com profundas consequências políticas que Petra Costa descreve no seu documentário "Apocalipse nos Trópicos", que estreou na quinta-feira no 81º Festival de Cinema de Veneza.

Costa recebeu uma nomeação para os Óscares em 2019 com "Democracia em Vertigem", disponível na Netflix, sobre a enorme tensão política no Brasil com a Operação Lava Jato, que levou à prisão do ex-presidente, na época, Luiz Inácio Lula da Silva.

De certa forma, "Apocalipse" é uma segunda parte dessa imersão nas políticas populistas do país.

"Acho que entramos numa camada ainda mais profunda, como as placas tectónicas que estavam a mudar o subsolo do Brasil, sem que algumas pessoas, principalmente da classe média intelectual, tivessem consciência da mudança na sociedade", explicou a realizadora em entrevista à France-Presse (AFP).

"É uma das mudanças religiosas mais rápidas na história da humanidade, além de guerras e revoluções", diz.

País predominantemente católico desde a sua colonização pelos portugueses, o Brasil tinha apenas 5% de evangélicos até 1974, quando ocorreu a visita do pastor protestante americano Bill Graham, que contou com a aprovação da ditadura militar (1964-1985).

A queda da ditadura não significou o declínio do fenómeno, muito pelo contrário. Todos os partidos políticos, incluindo o Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula, cortejaram essa parte do eleitorado.

Bênção das cadeiras

Petra Costa em Veneza

Ao longo dos anos, os evangélicos aprenderam a impor as suas próprias orientações políticas.

Quando Petra Costa filmava "Democracia em Vertigem", assistiu um dia, com surpresa, à bênção das cadeiras no Congresso por um pequeno grupo de fervorosos deputados evangélicos.

O que parecia uma excentricidade transformou-se numa poderosa bancada, encorajada, entre outros, pelo popular pastor Silas Malafaia.

Em segundo plano, caminhava um deputado muito conservador e, na altura, relativamente desconhecido, Jair Bolsonaro.

"Bolsonaro era o deputado mais fácil de entrevistar", lembra Costa.

A sua câmara consegue um grande acesso à intimidade de todos estes protagonistas, principalmente de Malafia, que abre as portas da sua casa para a equipa de rodagem.

Ao mesmo tempo, uma marca do seu trabalho, Petra Costa mistura estas passagens com arquivos de filmes e imagens da sua família, dos seus pais militantes contra a ditadura, ou da construtora que o seu avô fundou, uma das mais importantes do Brasil.

"Partilhamos a mesma terra, mas falamos línguas diferentes", medita a cineasta no documentário.

"Acho que nem Lula sabe o que fazer (...) porque grande parte da classe trabalhadora se tornou evangélica", acrescentou na entrevista à AFP.

As crises económicas e a pandemia de COVID-19 promoveram este movimento, cujos militantes percorriam comunidades pobres para distribuir alimentos e bíblias. Era uma competição direta com programas de ajuda pública.

"Não percebi a necessidade de grande parte da população, ou talvez de todos os seres humanos, de uma forma ou de outra, de uma espécie de transcendência, de uma espiritualidade, que pode ser religiosa", admite Costa.

E ao mesmo tempo "é necessário que haja uma separação muito clara entre Igreja e Estado, que corremos cada vez mais o risco de perder", acrescenta.