Os últimos dias

Apupos e não foram poucos: o visionamento de imprensa de “Frances”, de Bruno Dumont, foi recebido com o maior chinfrim após duas horas de gargalhadas, troças e alguns aplausos cúmplices com os ácidos diálogos desta cínica comédia sobre os nossos dias.

Léa Seydoux é France de Meurs, uma jornalista que se tornou referência no seu próprio universo e uma celebridade francesa de pujança, uma mulher ambiciosa e distante do mundo real que, após a queda na popularidade, motivada por um acidente, cede a uma crise existencial.

Frances

O filme recorre a um tom exagerado e satírico aos media, à sua manipulação e fabricação do nosso encontro com a realidade, abrindo a porta para o retrato de uma sociedade cruel e desumana. Bruno Dumont propõe aos espectadores encontrar a humanidade numa personagem detestável, autocondescendente e narcisista: Léa Seydoux é já uma das apostas fortes para o prémio de Melhor Atriz de Cannes, isto num festival que celebra este ano a sua presença em várias produções que passaram na Croisette.

Uma delas encontra-se também na Competição e chama-se “The Story of My Wife”, de Ildikó Enyedi, um “balde de água fria” para quem esperava pelo retorno da realizadora húngara laureada com um Urso de Ouro (Festival de Berlim, em 2017, com “Corpo e Alma”).

The Story of My Wife

Adaptação de um livro Milán Fust, eis a trama de um capitão (Gijs Naber) que, motivado pela solidão em alto-mar, decide casar com a primeira mulher que lhe aparecer, sendo Lea Seydoux a “sortuda” (ou não). Depois desse lado caricatural, “The Story of My Wife” é sobre o “sofrimento” de um homem infiel por causa da infidelidade da sua esposa: longo, martirológio e formalmente académico, este "europudim" de velha guarda aspira ser um novo clássico de um cinema confortável e narrativamente esquemático, sem qualquer calor humano.

Grande desilusão também foi Jacques Audiard e o seu “Les Olympiades'', um "ménage à trois" multicultural no bairro parisiense 13. Digamos que a deceção acontece tenho em conta o seu nome, associado a grandes obras de um cinema francês de linguagem acessível e apelativa ao grande público, como “O Profeta”, “Ferrugem e Osso” ou o magistral “De Tanto Bater o meu Coração Parou”, mas que ganhou a Palma de Ouro com um filme esquecível e menor como foi “Dheepan” (2015).

Les Olympiades

Ficamos com muitas dúvidas que chegue uma segunda consagração em Cannes com uma comédia dramática apimentada por tramas sexuais e de identidade, filmada a preto-e-branco. Simpático na sua abordagem, “Les OLympiades” é demasiado passivo quanto à sua matéria de cinema, soando-nos a uma obra vinda de alguém que acabou sair da escola de cinema, fascinado pela convencionalidade e pelas regras três-simples do academismo.

Serre-moi Fort

Fora de competição (mais concretamente na novíssima secção Cannes Premiere), e longe do dito academismo, o ator Mathieu Amalric, novamente dedicado à realização, apresenta-nos o masturbatório “Serre-moi Fort”, com inspiração numa peça teatral de Claudine Galea, um ensaio de realidades paralelas que lida com a dor, ausência e o umbiguismo do costume.

Podemos ver Vicky Krieps, atriz luxemburguesa que vimos há dias em “Bergman’s Island”, como um gancho humanizado nesta salganhada narrativa, mas nem mesmo a sua graciosidade salva-nos de um nado morto. O melhor foi deixar as periferias e voltar à corrida para a Palma...

Um grande filme de um realizador já consagrado

A Hero

Um dos fortes nomes na luta pelo troféu máximo de Cannes é o nosso habitual Asghar Farhadi ("Uma Separação", "O Passado", "O Vendedor"), de regresso a mais um dos seus contos sobre moralidade, voltando ao Irão após a sua experiência em Espanha (“Todos Sabem”). Agora, o espectador vai ser desafiado a estabelecer contacto com uma personagem maliciosa, digna de um ato que levará a uma discussão sobre a sua própria ética, envolvido com obstáculos emocionais e imbróglios quase "kakfianos".

O Irão faz bem ao cinema do realizador: as estranhezas desta sociedade para os olhos dos ocidentais funcionam como distopias propícias para os seus joguetes de consciência, coisa que as suas migrações cinematográficas não concretizaram: “A Hero” é um dos grandes filmes na competição, reunindo os elementos habituais do cinema iraniano e trabalhando-os em prol de um guião conciso e estimulante.

Red Rocket

Passando para o Ocidente, a malapata de um ex-ator pornográfico (Simon Rex) num Texas decadente em “Red Rocket”, de Sean Baker, é o que os próprios americanos apelidam de “must”.

O realizador de “Tangerines” e “The Florida Project” concentra mais uma vez no seu retrato os desfigurados dos EUA, filmando os que não têm voz, os indesejados ou simplesmente os descuidados. Neste caso, unindo um humor “fura-vidas” e um drama descurado, oferece-nos um olhar clínico de uma América repreensiva e subjugada aos seus valores tradicionais.

Dos EUA passamos para a Colômbia e “Memoria”, do tailandês Apichatpong Weerasethakul, que conta com a atriz britânica Tilda Swinton para levar as suas temáticas a um maior número de audiências.

Já consagrado com a Palma de Ouro (“O Tio Boonmee que se lembra das suas Vidas Anteriores”, 2010), o realizador marcou uma visita ao Grand Theater Lumière 11 anos depois com uma sensação de triunfo. A receção foi vibrante, ainda que o filme tenha levado os mais distraídos quanto ao seu cinema a sair da sala ou cederem ao sono. Mas segundo Apichatpong, dormir nos seus filmes não é ofensa, pelo contrário.

Memoria

Cinema lento para saborear calmamente, alicerçado em imagens que falam por si e por todos nós, “Memoria” é, mais uma vez, a tese da existência contínua, a memória, os sonhos e a morte, tudo envolvido numa grande massa que nos interliga, uns aos outros, durante gerações e gerações.

O único senão aqui é que o tailandês já nos deu isto e esteticamente superlativo. O seu exotismo próprio migra para a Colômbia, dando origem a um exotismo austero que não é verdadeiramente seu, transformando-se num “olhar estrangeiro”. Porém, tal como todas as suas obras, “Memoria” merece, quase exclusivamente, a grande tela, não só devida às imagens captadas e a sensorialidade trazida por elas, mas pela acústica. O som trabalhado é de uma importância enorme para com esta experiência e para com Tilda Swinton, que demonstra mais uma vez que é uma das atrizes mais interessantes do nosso tempo, versátil e simultaneamente particular...

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