O Cinema do turco Nuri Bilge Ceylan condensa-se, resumidamente, como reflexões sobre o peso do legado e da forma como as gerações mais jovens encaram esse incontornável "status", por vezes diluindo na viciada cadeia. Foi assim que começou com a sua primeira longa - “Kasaba” (apresentado no Festival de Berlim em 1997) - até se expandir e adquirir diferentes aspetos, numa carreira que tem sido celebrada e premiada um pouco por todo o lado.

O cineasta toma assim de assalto um legado seu, embebendo do seu ambiente para aguçar as diferentes dogmas do Cinema tradicional. Para ser exato, foi a partir de um quarteto que “subiu escadarias” até chegar à tão cobiçada Palma de Ouro de Cannes - “Climas” (2006), “Os Três Macacos” (2008), “Era Uma Vez na Anatólia” (2011) e o referido galardoado “Sono de Inverno” (2014) - que o turco se tornou num dos mais venerados autores do cinema contemporâneo.

Com a chegada deste “A Pereira Brava”, que, numa exceção, saiu de Cannes sem qualquer prémio, testemunhamos uma repetição do material que Ceylan assumiu como o seu manifesto, novamente explorando a juventude em confronto com as complexidades da sua recém-maturidade e do mundo envolto, assim como as prisões invisíveis impostas pela hereditariedade.

Nesse sentido, vamos ao encontro de Sinan Karamasu (Dogu Demirkol) que, após finalizar a licenciatura, regressa à aldeia natal com o intuito de terminar de o seu projetado livro. Nessa sua estadia, terá que lidar com memórias passadas, desde os amores de juventude até às amizades esquecidas, e o destruidor vício do jogo do seu pai.

Essa jornada, em cadência derrotista e uma cedência ao bucolismo, encaminha-nos para as enésimas encruzilhadas da atualidade sob o ponto de vista de Ceylan, com as interpretações do Corão como um dos momentos (positivamente) mais caricatos ou a discussão para apurar e legitimar o centro literário. Coincidentemente, em ambos os debates, as personagens deslocam-se … e deslocam-se em rumo a um destino certo. É o movimento destas figuras que, em consolidação com uma montagem invariável, expõe uma noção própria (sem nunca deslargar os ensinamentos deleuzeanos) sobre imagem-tempo e imagem-ação.

Nuri Bilge Ceylan prova ser capaz com a simplicidade da ação inerente, mas com a hiperatividade da manipulação extrínseca cinematográfica, distorcer uma duração de três horas para um aliviante sentimento de hora e meia. Até porque o tempo [duração] é algo relativo e facilmente manipulável. Digamos que esta anarquia perante os códigos hollywoodeanos, e de certa forma académicos, o torna mais próximo das tendências atuais das séries televisivas, onde o diálogo importa… aliás, muito … sobrepondo-se à ação e esta, por sua vez, subjugando ao dito e sabido.

Pode parecer quase hipocrisia colocar TV (seja convencional ou plataformas de "streaming") no mesmo barco do Cinema de longo fôlego de Ceylan, mas a verdade é que não se trata herança adquirida em nenhuma das partes: trata-se de um paralelismo que nos revela uma ascendente forma de ver o audiovisual, com isto repescando os ensinamentos do "arco-da-velha" de um dos mais importantes teóricos da imagética, Gilles Deleuze.

Longe das doutrinas sobre a natureza e manifestação das imagens categorizadas, “A Pereira Brava” continua a arrebatar-nos com momentos de puro Cinema, e sem o uso maleável da montagem. Simplesmente, o autor aproveita todos os recursos que dispõe, principalmente do meio rural, ao qual dedica grande parte do tempo. O onipresente vento, que chocalha os ramos da titular pereira em sincronia com o cabelo indomável da paixão de Sinan, o Sol, a água e o seu reluzente inconstante e até mesmo a terra/solo. Elementos naturais (um pouco primitivismo aqui), mas que são mais-valias para o olhar do realizador. E sem cair na banal corrente do adjetivo, são imagens belas por sinal.

Obviamente que a verborreia e o prolixo são identificáveis marcas autorais de Ceylan: “A Pereira Brava” é como um filho bastardo que tenta seguir as pisadas dos seus “brilhantes” antecessores, por vezes tropeçando por caminhos mais duvidosos. É um filme que nega a sua orgânica narrativa, que pausa para deambulações filosóficas ou simplesmente quotidianas, uma desaprovação dos códigos impostos pela indústria... mesmo que seja a do cinema de autor.

Talvez seja por isso que este filho "não querido" encontre a compaixão dos seus congéneres junto destes. Mais que um filme, a prolongação da obra e do homem por detrás. Quanto o Cinema consegue ser belo e desengonçado, artístico e sobretudo Humano.

"A Pereira Brava": nos cinemas a 28 de março.

Crítica: Hugo Gomes

Trailer: