A HISTÓRIA: Viver no Mundo da Barbie é ser perfeito num lugar perfeito. A menos que se tenha uma crise existencial. Ou que se seja um Ken.

"Barbie": nos cinemas a partir de 20 de julho.


Crítica: Francisco Quintas

Numa era em que prevalece a originalidade para conteúdos digitais, há muito que o dever de Hollywood deixou de ser, simplesmente, agarrar a atenção de determinadas faixas etárias ou classes sociais: requer-se algo mais para convencer um público-alvo a comprar bilhete.

Um elenco popular continua a ser uma jogada mais que viável e, posto isto, a adaptação de uma conhecida propriedade da Mattel, conjugada com as sorridentes caras e nomes de Margot Robbie e Ryan Gosling em notícias e posters, teria pernas para andar. Em princípio.

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Acontece que um dos maiores calcanhares de Aquiles de Hollywood continua a ser fazer de um brinquedo uma base de um filme sólido e interessante. Felizmente, para cada dececionante “Transformers”  surge, de vez em quando, um “O Filme Lego” (2014), uma animação frenética e consciente de si própria, que conseguiu contar uma história divertida e, para surpresa dos cínicos, com algo a dizer. E talvez seja este ingrediente – uma autoconsciência de deboche e sátira – a fazer falta neste tipo de produções. Isso e a contratação dos realizadores certos.

Realizado por Greta Gerwig, “Barbie” encaixa-se nesse perfil. Além de ter vindo a apresentar a campanha publicitária mais original desde o desavergonhado “Deadpool” (2016), distancia-se de uma onda de surpresa relativa à sua qualidade. Ou seja, pelo tom do material promocional – em 2023, até um 'meme' pode fazer a diferença –, esperava-se que o filme revigorasse os estereótipos e desleixos criativos das atuais histórias sobre feminismo e a cultura 'woke'. Por outras palavras, esperava-se que o filme fosse bom. E é.

Escrito a meias com o marido Noah Baumbach, autor de “Marriage Story” (2019), “Barbie” expõe a versatilidade de Greta Gerwig. Indo ao encontro de pontos recorrentes no seu currículo – ambição, descoberta, perda de inocência e amadurecimento –, o filme domina um humor de gama ampla, do absurdo ao negro e referencial. Melhor ainda quando reside num universo de perfeitos artifícios, um mundo literal de bonecas. E que bem que foi construído: pela direção de arte de Dean Clegg, o guarda-roupa de Jacqueline Durran e a fotografia de Rodrigo Prieto, sem esquecer os charmosos temas musicais de Mark Ronson e Andrew Wyatt.

Ademais, como já foi dito, para um bom guião há que procurar bons atores. Estritamente pela aparência, é unânime que as escolhas para Barbie e Ken sempre foram acertadas. Mas, sendo o seu talento para comédias bastante subvalorizado, não é exagero sublinhar que Margot Robbie e Ryan Gosling estão sensacionais. A primeira, desbravando por desconhecimento e constrangimento, com gritantes fugas da personalidade de “mulher perfeita”, no riso e na lágrima. O segundo, numa ansiosa, gabarola e birrenta jornada por aprovação (e pela miúda, como é óbvio).

O restante elenco de plástico, modere-se, beneficiam da natureza caricatural das personagens, entregando cada piada com muita dedicação. Destaque para Michael Cera, Simu Liu e Kate McKinnon.

Em território humano, é com surpresa que se recebe uma certa hiper-realidade cómica, se assim se pode chamar. Isto porque, face a um mundo verossímil e sem qualquer distorção, o corpo da Mattel, empresa-mãe da boneca loira e cor-de-rosa dos pés à cabeça, mais parece a hipérbole da corporação capitalista. Para isso, contribuem a hilariante presença de Will Ferrell, na pele de um nervoso CEO, e a nuance terra-a-terra de America Ferrera, na pele de uma vulgar cidadã.

Manifestando gozo com absurdos, “Barbie” perde, porém, credibilidade com algumas omissões e conveniências narrativas. A mais evidente sendo, chegados à Califórnia rotineira, Barbie e Ken caem em situações que terminam na esquadra. Após identificados e aprisionados, restou saber o que teve de acontecer para, de um segundo para o outro, caminharem alegres e desalgemados, como se nada tivesse acontecido.

Além disso, um humor com noção de si não é sinónimo de uma carta branca para qualquer diálogo autoexplicativo. As aprendizagens individuais mais significativas são, muitas vezes, escancaradas na cara das personagens, proporcionando momentos engraçados. Por instantes, contudo, desejava-se que o filme respirasse, em silêncio e simplicidade.

Nunca deixa de ser uma vitória que um filme consiga ser, em simultâneo, cínico em relação aos podres e risíveis da atualidade e romântico nas convicções que professa, sem jamais cair em moralismos escusados. Por não pretender ser apenas um palco de venda de um “merchandise”, mas sim um conto bem-humorado e altamente relacionável, “Barbie” dignifica e revitaliza a sua própria abordagem.