Mosquito
A HISTÓRIA: Moçambique, 1917. Zacarias é um jovem português sedento por viver grandes aventuras heróicas durante a Primeira Guerra Mundial. Enviado para Moçambique, onde o conflito se desenrola longe dos olhares do mundo, o soldado vê-se deixado para trás pelo seu pelotão e parte numa longa odisseia mato adentro, à procura da guerra e dos seus sonhos de glória.
Crítica: Hugo Gomes
Eis um dos grandes filmes portugueses da nossa História. Exagero? Talvez não, considerando tanto o seu formalismo como a sua visão, que transgride uma História ensinada e distorcida por valores patrióticos de fala maior.
Começando pelo formalismo, é certo que o realizador João Nuno Pinto demorou cerca de oito anos para concluir este “Mosquito”, um retrato anti-bélico e anti-colonialista que descortina o cada vez mais longínquo ano de 1917 e a Primeira Grande Guerra em que Portugal participou (em paralelo tivemos a grande e homónima produção de Sam Mendes, "1917").
O campo de batalha decorre em Moçambique, como o local de preservação do restante império lusitano contra invisíveis invasores. E no seio deste cenário de guerra e inquietude encontramos Zacarias, um jovem soldado com os seus verdes 17 anos, cego pelas lengalengas nacionalistas e do fascínio militarista que, devido a uma doença repentina, se separa do restante batalhão.
Determinado em reencontrá-los, Zacarias (uma revelação, João Nunes Monteiro), parte com dois negros para o indomável e selvagem moçambicano, iniciando ele próprio uma jornada de contornos carroleanos com o seu quê de Joseph Conrad (“O Coração das Trevas”).
Em “Mosquito” deparamo-nos sobretudo com um filme sensorial, que rés a rés entende-se por xamânico, que se instala num intermédio de real e imaginário. Essa incerteza com que Zacarias é confrontado leva-nos a uma angustiante viagem de estados alterados e consciências tão fragmentadas como a sua narrativa mirabolante.
Longe dos rigorismos e o virtuosismo das grandes produção (comparativamente com "A Herdade", também produção de Paulo Branco), “Mosquito” é uma obra centrada nos "travellings" e na quase diluição da câmara à mão com o protagonista. Nesse sentido, funciona como uma exemplar dinâmico à luz de alguns ensaios do cinema europeu, implicitamente realista e frio. A frieza joga a seu favor, enquanto se vai desconstruindo num jeito febril.
Seguindo pela sua temática, o nosso olhar pelos feitos colonialistas (de certa forma relançados durante o Estado Novo em sintonia para com a perfeita fantasia lusitana), o realizador João Nuno Pinto responde com uma (des)fabulação desse mesmo sonho molhado. Esta anti-romantização, da mesma maneira que o fez no universo dos migrantes na sua primeira longa-metragem (“América”), desvenda um papel incómodo dos portugueses numa África em suplício de emancipação.
No egocentrismo de Zacarias existe todo um quadro de opressões, crueldades e resquícios da cultura escravocrata que atentam à imagem do “bom colonizador” que, principalmente, o cinema português favoreceu e da qual se tem distanciado nos últimos anos. Frente a essas abordagens, “Mosquito” subversivamente coloca a nu as suas cicatrizes forçadamente saradas, como quem deseja relançar o debate para gerações futuras.
Curiosamente, tal como em “Vem e Vê”, a obra exponente russa de Elem Klimov, no filme de João Nuno Pinto é evidente o sacrifício na personagem de Zacarias, que servirá de testemunho para uma coletânea de horrores, caindo, desgraçadamente, nas pompas da cruel piada do destino. Fisica e psicologicamente, o transtorno do protagonista revela-se a mais conseguida arma de “Mosquito” como estandarte das sempre ocultadas mazelas de guerra.
Tudo isto torna "Mosquito" um dos mais corajosos e incisivos filmes da nossa “indústria”.
"Mosquito": estreou nos cinemas a 5 de março de 2020.
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