A HISTÓRIA: Nesta sátira negra de Pablo Larraín, Augusto Pinochet é um vampiro disposto a abraçar a morte, mas os abutres que o rodeiam insistem numa última dentada antes de partir.

"O Conde": disponível na Netflix a partir de 15 de setembro.


Crítica: Francisco Quintas

Nos últimos anos, o chileno Pablo Larraín consolidou-se como um dos biógrafos mais interessantes do cinema contemporâneo. O seu engenho em selecionar personalidades históricas, mais ou menos controversas, e subverter a fórmula estafada perfaz um talento difícil de encontrar.

Fazendo jus a um jovem Pedro Almodóvar ostentando as suas musas, “Jackie” (2016) e "Spencer" (2021), sobre Jacqueline Kennedy e a Princesa Diana, respetivamente, decifraram um equilíbrio único entre o real e a ficção. Ademais, os traços autorais de Larraín propõem uma visão fabulística dos factos, com tanto de encanto quanto de desilusão.

E esta visão, em simultâneo, fantástica e pessimista da Humanidade, não poderia ser mais sentida em “O Conde”, cujo sujeito em estudo é o Capitão-General Augusto Pinochet.

Que mais haveria, no entanto, na história deste sanguinário ditador, o líder com mais longo mandato do Chile, para desencantar? Além de eventuais motivações justiceiras, de que modo o realizador convenceria o espectador a embarcar numa sátira altamente fúnebre, à exceção de todos os elementos grotescos (sangue, órgãos, decapitação, entre outros).

Pois bem, rejeitando heroísmos e bandeiras, não muito diferente do que fez em “Neruda” (2016), sobre a caça policial ao poeta Pablo Neruda, “O Conde” faz pirraça de uma das características mais universais do ser humano: a ganância.

Pouco importa se falamos sobre a classe operária, artistas ou uma hierarquia militar e nepotista. À beira da morte, como se encontra este vampírico político, os ânimos são circundados por abutres que de singular nada têm. A família abastada e traiçoeira de Pinochet pode não o enganar – são mais de 250 anos de experiência de vida –, mas cumpre o requisito de retratar um país, e um mundo, assente em alianças frágeis, falsas intimidades e uma imortal sede de poder.

Praticamente todas as personagens são desprezíveis. Ninguém presta, ninguém tem qualidades redentoras. Larraín elevou um palco de degredo que o público pode apreciar com todo o regozijo e distância, um expoente macabro de vilania e violência.

Não obstante omissões de informação importante sobre algumas personagens, o guião de Larraín e Guillermo Calderón premiado na recente edição do Festival de Veneza acerta as notas e proporciona diversões variadas. Pinochet pode sobrevoar o Chile atual, à procura de pescoços e corações, ou incorrer sobre dinheiro, traição, paixão, a sua “evidente inocência” e de como, no final de um reinado bárbaro, a maior vítima é ele. A figura de um monstro é, por conseguinte, reduzida a um bicho diminuto, um animal de estimação quase adorável.

Dirão alguns que satirizar o legado de crueldade e frieza de uma pessoa como Pinochet corre o risco de atenuá-lo. Enquanto se assiste a “O Conde”, é possível, sim, que se esqueça de quem temos diante dos olhos, para efeito da comédia. Tendo em conta o seu prazo, o mesmo término de todos os seres humanos anteriores e posteriores, não parece existir melhor maneira de fazer pirraça, seja qual for o desenlace da ficção.