A HISTÓRIA: Presa a uma relação violenta e controladora com um rico e brilhante cientista, Cecilia Kass foge. Mas quando o abusivo ex-marido comete suicídio e lhe deixa uma generosa parte da sua vasta fortuna, ela suspeita que a sua morte é apenas um embuste.


Há anos que a Universal Pictures anseia em devolver vida à sua galeria de monstros clássicos, já praticamente cedidos ao domínio público, e integrá-los num universo partilhado, cobiçando os moldes da Disney e do seu departamento Marvel.

Durante as constantes “reanimações”, foram muitos os fracassos, desde um início corriqueiro do vampiro-rei de Bram Stoker ("Drácula: A História Desconhecida") até à múmia do Egito vergada aos egos de Tom Cruise e às delirantes ambições do estúdio em potenciar uma eventual saga (o "Dark Universe").

Graças a esses erros e o limbo que serviu de destino a muitos outros projetos não-concretizados (uma Noiva de Frankenstein de Angelina Jolie e até mesmo um Homem-Invisível com Johnny Depp), o estúdio requisitou os serviços da Blumhouse, a produtora que opera à imagem do seu produtor Jason Blum e tem como lema de construir um legado de obras de género com custos baixíssimos, para explorar um dos seus principais patrimónios, “O Homem Invisível”, uma das criações do “pai da ficção cientifica” H.G. Wells.

Para o lugar de capataz de projeto foi contratado um artista habituado a estas andanças de "low cost", Leigh Whannell, que se tem emancipando de mero suporte “criativo” de James Wan (“Saw”, “Insidious” e “Silêncio Mortal”) e avançou para uma estética com base na sugestão e do desenrasque (basta ver “Upgrade” e o seu distinto "know-how").

Através de “O Homem Invisível”, Whannell pôde trabalhar, arquitetar e moldar esse efeito de instigação através de um antagonista invisível e para tal, era imperativo ter à sua mercê um(a) protagonista capaz de nos fazer acreditar em entidades e “mãos invisíveis”... sem ser a do capitalismo.

A eleita é Elisabeth Moss, que integra a ação como um assumido caco humano, dubiamente frágil, psicologicamente desequilibrada e, mais do que tudo, alicerçada num arquétipo de feminino passivo-agressivo. Uma personagem forte, sem com isso obedecer ao estabelecido “cabide” de Hollywood.

A atriz é esse vetor que torna “O Homem Invisível” fortemente emocional, quer no seu "pretexto" científico (o célebre "MacGuffin", como foi popularizado por Hitchcock), quer na sua alusão à violência doméstica ou abusos de poder.

Sim, o clássico literário de H.G. Wells depara-se aqui com a sua versão #MeToo, entendida como um atalho aos mais diversos e recentes escândalos desta área. E, apesar disso, Whannell (que também é autor do argumento) nunca o reduz a uma panfletária "hastag": a protagonista "veste" uma ambiguidade, explorando o meio caminho entre a vítima "scream queen" e a vingativa heroína "final girl".

Se Elisabeth Moss representa a parte racional e emotivo do filme, a sua imaculada atmosfera é fortalecida pela ginástica de Whannell para recriar ritmo por vias de uma câmara desengonçada que reage por instinto e uma música minimalista (lições estudadas por John Carpenter).

Ou seja, soube-se criar em “O Homem Invisível” uma coletânea de suspense de envolvências clássicas, do terror de facaria à dinâmica ação do "one-shot" (os planos-sequências que mapeiam o minado território numa espécie de "home invasion" destilado), para respeitar o lado perverso dos escritos de Wells e o modernismo da nossa veloz realidade (a contemporaneidade está na abordagem, no desenvolvimento das personagens e não somente no estilo e cadência).

Se haverá sequela, universo partilhado ou "spin-offs" de qualquer natureza ainda é cedo para prever, mas, por enquanto, Leigh Whannell conseguiu um filme que vive por si só e, ao contrário do seu “monstro”, não tenciona mesmo passar despercebido. E com isso temos aqui uma entusiasta surpresa do cinema de género entregue por um grande estúdio de Hollywood.

"O Homem Invisível": nos cinemas a 5 de março.

Crítica: Hugo Gomes