Poucas horas depois de ter subido ao palco do Coliseu Porto Ageas, ainda ecoa a musicalidade dos temas de Carminho, por ruas e vielas portuenses. Basta que feche os olhos e me deixe embalar pelas suas "praias desertas".

Este será, provavelmente, o melhor que posso dizer sobre uma noite, de facto, memorável. Numa sala de espetáculos completamente esgotada, Carminho cativa cada um dos presentes, com a sua voz, com os seus temas, mas também com os monólogos que mantém entre canções, preciosos e espirituais. O palco é a sua casa e Carminho é uma anfitriã carismática, envolvente e apaixonante.

“Portuguesa”, nome do seu mais recente trabalho, é surpreendentemente refrescante e coloca, na minha modesta e insignificante opinião, Carminho como  a voz  do Fado contemporâneo, em Portugal. Deveria ouvir-se mais, nas rádios e na televisão, a “Portuguesa” catita, entre marchas populares e fados reinventados. Digo eu, mas que sei? À parte, do som d’ “O quarto” tão perto, tão dentro.

É, precisamente, com o tema “o quarto” que Carminho inaugura o espetáculo. No centro do palco, toda vestida de preto, uma luz branca projetada nas suas costas, desenha os seus contornos e é o máximo que conseguimos ver. Já ouvir, é outra coisa, a outro nível qualquer, que nos transcende. A música é tudo o que importa ver e ouvir. Seguem-se no alinhamento “As flores” e “As fontes”,sempre no mesmo cenário sombrio, apenas na cor, do som ofuscante e arrepiante das guitarras e da melodiosa voz de Carminho.

O palco recebe mais um pouco de luz e o ambiente, ainda em suspenso pelos últimos acordes, respira ao som de “Praias desertas”: "Oh, meu amor, eu nunca te esqueço»" Não há como fazê-lo, mesmo que esse fosse o desejo, o que está tão longe de ser.

Carminho fala-nos da sua viagem pela música, dos caminhos da  “Portuguesa”, sublinhando, a par e passo "a prática do fado tradicional, um fado que evolui, com novas palavras e novos instrumentos, num gesto mil vezes repetido". A forma como nos explica cada tema e como enquadra cada canção torna o momento ainda mais especial, numa sala suficientemente grande, para percebermos que somos muitos, e demasiado pequena,  para o tanto que Carminho dá ao público. 

Assoberbados, seguimos, de tema em história, de história em poema, de surpresas a marchas. À leveza e alegria da “Marcha de Alcântara de 1969”, seguem-se temas como “Fado é Amor”, “Palma” e “Simplesmente Ser”. Antes ainda, nas voltas do tempo, entre um passado longínquo e uma letra recente, chegamos ao Fado de Santa. Luzia, com o tema “Se vieres”, do álbum “Maria”, de 2018. 

Isto, até cruzar um poema que Manuel Alegre escreveu na década de 60 e que chegou às mãos de Carminho por uma das suas maiores referências na música, a fadista Beatriz da Conceição, e que lhe estava «destinado», tantos anos mais tarde, ”É preciso saber porque se é triste”.

«E aqui tão perto de ti
Posso por fim descansar
Meu desejo, meu maior anseio
É poder ficar»

É com esta imensa vontade de “Ficar”, tema escrito por Joana Espadinha, que a Carminho se acerca ainda mais e toma definitivamente conta do público. De Luísa Sobral, chega-nos “Sentas-te a meu lado” e ainda bem - ainda bem - que Carminho teve a brilhante ideia de convidar compositores contemporâneos para alguns dos temas deste novo trabalho.

CARMINHO
créditos: PAULO SOARES

Carminho apresenta-nos os seus músicos, da viola ao baixo, do mellotron à guitarra elétrica, até chegar à inestimável guitarra portuguesa, com solos que nos vão enchendo a alma. Num rol de canções e confissões, seguem-se temas como “Pedra Solta” e “Levo o meu barco no mar”. 

"Intenso", é assim que Carminho caracteriza o público do Norte e confessa, que «ficava aqui toda a noite». Quem não ficaria a ouvi-la? Num desfiar de temas, que a páginas tantas, são pedidos do público, como o tema “Tu és a Estrela”, eternizado numa interpretação recente para o Papa Francisco, na Jornada Mundial da Juventude, em Lisboa.

O espetáculo de Carminho no Coliseu Porto Ageas, na fria sexta-feira, do dia 10 de novembro de 2023, foi… uma letra que ainda se há-de escrever, ao som de um fado tão seu, como foram os que teve a generosidade de partilhar connosco, nesta noite incrível. 

Mais de umas quantas ovações de pé não são suficientes, mas são as palmas que nos salvam e nos devolvem à vida de cada um. Valeu a pena.