Para muitos, é um dos maiores realizadores em todo o mundo. Mas não o vemos nas grandes salas de cinema, na programação televisiva de domingo à tarde, nem nos videoclubes. Yasujirō Ozu não é dos blockbusters, dos efeitos especiais ou dos atores-celebridades, mas criou algumas das mais bonitas peças de cinema. E fê-lo à sua maneira: serena, introspetiva, simples. Num mundo a correr, é preciso dedicar-lhe tempo. E é justamente o tempo um dos elementos mais fortes de Tōkyō Monogatari (“Viagem a Tóquio”, 1953).
Roger Ebert, a quem regresso sempre, contou que escolheu mostrar “Viagem a Tóquio” aos alunos de uma das suas aulas sobre os melhores filmes de sempre. Nos Estados Unidos daquele início dos anos 1990, o japonês Yasujirō Ozu não era um realizador muito conhecido. Diz Ebert que os alunos não estavam particularmente entusiasmados com a ideia, mas que foi ouvindo alguns deles fungarem durante a sessão. E, chegados ao fim, pôde perceber que muitos tinham dito uma experiência verdadeiramente emocional com aquele filme.
“Viagem a Tóquio” apresenta-nos um casal de japoneses que viaja desde a sua terra natal até Tóquio para passar algum tempo com os filhos e as suas famílias. A viagem de comboio é longa e o esforço de Shukichi Hirayama (Chishū Ryū) e Tomi Hirayama (Chieko Higashiyama), cuja idade lhes pesa, é notório. As famílias vivem ao ritmo da cidade grande, são adultos ocupados e crianças furtivas. O tempo é escasso e a visita acaba por tornar-se um fardo para os filhos, como percebemos pela forma como se dirigem ao casal.
Kōgo Noda, o guionista de “Viagem a Tóquio”, acrescentou um terceiro ponto de vista para tornar o enredo mais claro, porque o casal, apesar de perceber que se tornou uma visita inconveniente, não interpreta com maldade ou ressentimento a falta de dedicação dos filhos. Pelo contrário, desfazem-se em agradecimentos constantes e desdobram-se em vénias, como manda a tradição japonesa. Esse ponto de vista externo é Noriko Hirayama (Setsuko Hara), nora do casal. O marido, filho de Shukichi e Tomi, morreu há vários anos, na guerra. Noriko, que vive sozinha, recebe os sogros no seu pequeno estúdio com um prazer que contrasta com a falta de entusiasmo dos filhos do casal e é diminuído apenas por considerar que não tem as melhores condições.
Os valores da honra, da tradição e da família são o centro nuclear desta história e é curioso ver como Ozu, enquanto realizador, consegue mantê-los em muitos dos seus filmes, mesmo tendo sido escritos por mãos diferentes. O tempo, ou a sua passagem, é o tom que organiza aqueles três elementos. Em “Viagem a Tóquio”, Tomi, a mãe, adoece fatalmente no regresso a casa. Os filhos, que conseguem prescindir finalmente de um dia das suas vidas, chegam para velá-la. Mas o espectador não deve esperar arrependimento.
A visita é rápida e logo o pai é deixado à perplexidade da sua perda, acompanhado apenas pela filha mais nova, que ainda não saiu de casa, e com a nora, a quem oferece um relógio antigo de Tomi. É antigo, sublinha ele, e a mulher usava-o quando tinha a idade de Noriko, como se lhe estivesse a dizer (e a nós, espectadores) que é tão mais valioso quanto os anos que já tem. Retira-se que o tempo é precioso e estas duas horas e alguns minutos de “Viagem a Tóquio” podem parecer mais longas, porque o ritmo do filme assim sugere, mas não as lamentamos. Estamos envolvidos na vida das personagens. E talvez seja esse elemento emocional que falte a alguns filmes portugueses (os mais longos e menos agitados) e que afasta os espectadores menos pacientes.
A história não é extraordinariamente original mas merece mesmo que nos demoremos nela. É esse o compromisso que tomamos ao ver um filme de Ozu, porque também ele nos faz demorar em cada cena. A câmara – estática, como é sua marca – começa a filmar antes de os atores entrarem em cena e continua a rodar depois de saírem. Ozu mostra aquilo que a história confirma: a vida é uma passagem simples do tempo. Nós é que somos passageiros nela. Tudo o resto perdura, como as árvores que o realizador filma entre as cenas – indicador climatérico do momento em que nos encontramos agora.
A história merece atenção porque a forma como nos é mostrada é de uma simplicidade arrebatadora, o que torna a experiência deste filme tão emocional quanto Roger Ebert a descreveu. A direção de atores é notável, apesar de parecer inexistente. E a verdade é que nos afeiçoamos instantaneamente àquela mãe que sorri quase sempre e àquele pai que nos parece alheio a tudo.
Esse mérito é de Ozu, que nos mostra a ação no ponto de vista das personagens, eles que aparecem quase sempre ajoelhados no chão. A perspetiva do tatami apanhada pela câmara faz-nos imaginar que estamos ali mesmo, naquelas divisões apertadas que não são salas ou quartos, porque servem para tudo-: receber visitas, dormir, fazer refeições... É quase impercetível, mas sentimo-nos dentro daqueles espaços e pensamos conhecer as personagens, o que é notável tendo em conta que são poucos os sinais de intimidade entre elas. Os abraços são inexistentes mesmo entre a família e as conversas raramente são feitas olhos nos olhos, mas antes a olhar o infinito, os cenários de fundo ou as paisagens da natureza.
Num ensaio sobre os estilos de Akira Kurosawa e Yasujirō Ozu (juntos porque são apontados frequentemente como os mestres do cinema japonês), deparei-me com a dicotomia onna/otoko. Diz o vídeo que onna é relativo ao feminino e otoko ao masculino. Aplicando os dois conceitos ao storytelling, os filmes de Kurosawa seriam mais do domínio do otoko, porque se debruçam sobre os temas da sociedade, as guerras e as afirmações da identidade coletiva através desses conflitos. Já Ozu estaria na esfera de onna, porque os seus filmes são introspetivos e ajustam a câmara sobre o indivíduo e não sobre o seu grupo.
A leitura é interessante. Kurosawa era visto como um realizador mais próximo do Ocidente e, por isso, de maior sucesso junto do cinema de massas. Já Ozu foi, durante muito tempo, fechado numa bolha por se acreditar que era demasiado japonês para os espectadores ocidentais. Só que a nacionalidade como identidade não é limite para o sucesso de Ozu.
O limite está do outro lado, na disposição do espectador sobre como pretende usar o seu tempo. Sem diminuir a ação como género, ver “Viagem a Tóquio” é acreditar que os filmes de Ozu são mais enriquecedores do que qualquer filme de guerra. Ver “Viagem a Tóquio” é perceber que é possível sentir coisas, no meio da correria de todos os dias. Ver “Viagem a Tóquio” é olhar para nós mesmos e encontrar a humanidade que Ozu verteu para dentro dos seus filmes.
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