Até começarem s filmagens, quatro argumentistas escreveram mais de 20 versões do argumento de “A Espera”, que estreou esta semana em Portugal. O resultado, marcado pelo apuro visual, resulta num dos grandes candidatos a melhor filme a chegar às salas em 2016.

O filme narra a história de uma mãe enlutada, Anna (Juliette Binoche), que recebe em sua casa na Sicília a visita da namorada do filho desaparecido, Jeanne (Lou de Laâge, de “Respira”). Em estado de desespero, ela mantém a jovem na ignorância enquanto se agarra à sua jovialidade para fugir à sua própria sina. As imagens são magníficas, as atuações idem – ficando para a música o papel de dar o toque de classe final.

De passagem por Lisboa no âmbito da 8 ½ Festa do Cinema Italiano, o realizador Piero Messina falou com o SAPO MAG, entre outros assuntos, sobre a entrada de Binoche no projeto depois de um dia em que os dois cozinharam (?) juntos em Paris.

Bem mais problemática foi a entrada do seu contraponto no filme: antes de provar que era melhor que as dezenas de colegas que se submeteram a um processo de 'casting' que durou seis meses, Lou de Laâge conseguiu irritar profundamente o realizador e fazê-lo perder um voo…

Sempre simpático, Messina nem fica aborrecido diante da última pergunta, uma provocação sobre as descabidas comparações com Paolo Sorrentino, o mestre de “A Grande Beleza”, filme no qual o agora realizador foi assistente.

De que forma o conto de Pirandello se relaciona com o filme?

Bom, ele não serviu de inspiração, apareceu quando tinha escrito a versão final e um amigo encontrou algumas semelhanças com a história e me aconselhou a lê-la. Então, ela serviu mais para fechar, para concluir o guião. Assim, foi mais útil a nível teórico, para perceber o tema, do que para tirar elementos da história em si.

Quatro argumentistas trabalharam na escrita. Como funcionou a construção do argumento?

Encontrávamo-nos diversas vezes e dizia o que queria e depois tínhamos longos debates. Jantávamos, passávamos tardes inteiras juntos pensando como deveria ser. Cada um depois escrevia uma versão do que havia sido discutido. Eu pegava em tudo o que estava escrito, selecionava alguns trechos e voltava a escrever pegando nos elementos dos outros. Roubava deles.

Pergunto isso porque o argumento é muito preciso, não tem falhas.

Isso foi porque escrevemos quase 20 versões do argumento, foi quase como um processo de 'destilação' - até ficarmos, na última versão, com aquilo que realmente importava.

É um filme muito visual, onde a casa tem um papel enorme.

Sim, concordo com isso. Precisava de um espaço muito preciso. A casa em si não existe, as partes tiveram que ser construídas para chegar ao tipo de lugar que precisava para o filme. Na primeira parte era muito importante que as personagens tivessem uma relação com o espaço. Na construção da casa fizemos os tetos mais altos para elas parecerem mais pequenas. A própria casa não tem quase preenchimento, tem o mínimo indispensável de mobília.

Também tem a ver com a solidão dela.

Exatamente. Para construir a casa daquela forma tivemos que gastar muito dinheiro e a produção perguntava a razão. Não sabia explicar, mas sentia essa necessidade. Só no último dia de rodagem, quando começaram a desmontar a casa, é que percebi – quando um dos cenógrafos disse a brincar ‘Olha Piero, todo esse espaço inútil’. E compreendi que toda essa inutilidade estava relacionada com a palavra ‘dor’. E essa relação era poética, entre a inutilidade do espaço e a dor da personagem.
A respeito do visual, é uma coisa sobre a qual se tem falado muitíssimo. É certo que dou muito valor a isso, mas o meu método é quase instintivo. Sempre me concentro muito no trabalho com os atores e o trabalho visual é uma coisa instintiva.

Em termos de conteúdo, o que a protagonista faz por vezes parece monstruoso – inclusive há um personagem que vai embora a certa altura do filme.

Discuti muito isso com Juliette, sobre o risco de que a personagem se tornasse malvada mas, mesmo assim, decidimos seguir em frente desta forma. O motivo todos nós podemos compreender emocionalmente, é uma dor demasiado grande e a sua relação com Jeanne é uma forma de poder escapar. No lugar dela, faria a mesma coisa se tivesse essa força.

Mas leva bem longe a ambiguidade da personagem.

Todo o filme é ambiguidade, nunca se sabe se ela é boa ou má. Quando a virgem perde o véu é onde esse caráter dúbio se perde também e o filme se revela.

Falando de ambiguidades, aquele sopro de vida que a personagem de Lou de Laâge inspira tem uma conotação sexual…

Sim, é verdade. O filme é construído entre dois polos. Em primeiro lugar, temos a Anna sem vida. Uma coisa que conversei com Juliette foi que, por exemplo, naquela cena quando ela está deitada na cama a ideia é que ela se transformasse quase num objeto, como se fosse parte da mobília. A Jeanne é o contrário, é a modernidade, a jovialidade, traz a música 'pop'. A ideia é que estas duas polaridades começassem a entrar numa espécie de osmose e a Anna começasse a “sugar” a vida à Jeanne que, por seu lado, começava a ficar com dúvidas – e então ambas influenciavam-se mutuamente.

Como foi a entrada das atrizes no projeto?

A Juliette desde início era a minha escolha principal, queria muito trabalhar com ela. Então enviei o guião à agente dela, que lho passou. Ela gostou muito e depois encontrei-a em Paris para conversarmos sobre o projeto. Passamos um dia a falar, a cozinhar…

Cozinhar?

Sim, estivemos a cozinhar juntos [risos]. Com a Lou de Laâge foi o contrário. Estive durante seis meses em Paris a fazer 'casting', acho que entrevistei todas as atrizes francesas desta idade [risos]. A última atriz, no último dia, foi a minha escolha.

Como foi?

Já tinha escolhido alguém, mas a minha diretora de 'casting' disse ‘Não, há mais uma pessoa, vê’. Disse ‘OK, vamos fazer esse último’. Mas ela estava muito atrasada, cheguei a perder o meu avião e estava muito zangado quando ela chegou. Então decidi fazer de conta que estava a fazer um 'casting', não era a sério. Mas quando ela começou a ler o guião percebi que realmente ela era muito diferente das restantes atrizes que tinha visto. Passámos três horas já não a fazer testes, mas provas. Foi quando percebi que tinha passado seis meses a fazer algo que não me interessava, que não era isso que estava à procura. Ela trouxe algo mais interessante consigo. Então acabei por reescrever a sua personagem.

No geral, é um filme que tem tido uma excelente receção, a começar pelo Festival de Veneza, onde o estreou…

O aplauso em Veneza não foi da crítica, foi do público. O filme teve muitos aplausos mas fora da Itália, onde foi muito atacado.

A sério?

Sim, acho que foi por ter trabalhado com [Paolo] Sorrentino, herdei uma certa antipatia em função disto. Mesmo assim li as críticas muito depois e gostei muito de algumas em jornais que seguia desde muito jovem e isso para mim foi um grande prazer.

Já que fala no assunto, chegou a hora da questão Sorrentino… As comparações aborrecem-no?

Bom, pessoalmente não compreendo as comparações. Trabalho muito o lado visual, tal como ele, mas as minhas influências são mais ligadas ao cinema russo, realizadores como Tarkovski, Sokurov. Não me irritam as comparações com ele em si, gosto muito dos seus filmes. O que me chateia é ler críticas onde tudo é uma análise comparativa entre um e outro, que se concentram em encontrar semelhanças e diferenças e esquecem de falar do filme em si.

Trailer "A Espera".