A discussão acesa e constante sobre o nosso passado colonialista tem preenchido a atualidade e também servido para a instrumentalização política. O que fazer com essa mesma herança? Apagar ou abraçar? O documentário "Visões do Império” não impõe nem uma nem outra, mas propõe a reflexão sobre esses mesmos dias através das fotografias captadas durante esse período.

Numa recolha de imagens pessoais, antropológicas, propagandistas ou macabras, a realizadora e investigadora Joana Pontes esperou entender e dar a entender os diferentes prismas nas nossas expedições em África, o trabalho de colonização e ainda os conflitos que desencadearam a Guerra Ultramarina. Uma procura que foi desde as bancas da Feira da Ladra até aos arquivos da Torre do Tombo e do Jardim Botânico, contando com contribuições de investigadores, antropólogos e arquivistas.

créditos: Carlos Martins

Gostaria que nos falasse sobre a ideia deste filme, como lá chegou e as razões que a levaram a fazê-lo?

A ideia começou quando estava a trabalhar na investigação para o meu doutoramento em História, que terminaria numa dissertação intitulada "Sinais de Vida, correspondência da guerra, 1961-1974". Percebi que nas cartas trocadas entre os militares, as suas famílias e amigos, circulavam muitas fotografias, entre outras coisas como dinheiro, imagens religiosas, amuletos, etc. Fui à procura de trabalho académico sobre fotografia da guerra, mas nada encontrei. [Hoje encontraria o excelente trabalho que a Maria José Lobo Antunes está a desenvolver nesta área]. Entretanto, vi o livro “O Império da Visão”, um trabalho sobre fotografia colonial coordenado pela Filipa Vicente que conta com inúmeras contribuições de investigadores. Fiquei a pensar como seria interessante fazer um filme que, numa linguagem apropriada, trabalhasse alguma desta investigação que, geralmente, fica no espaço académico e a pusesse em discussão no espaço público. Fui ter com o Miguel Bandeira Jerónimo, que já conhecia, autor de um dos textos deste livro e historiador. Falei-lhe desta ideia e ele ficou entusiasmado. Desafiámos a Filipa Vicente para se juntar a nós. E assim foi. Entretanto, passei umas boas horas a olhar para as fotografias da minha infância e família e percebi que era a partir delas que se colocavam as questões que me foram surgindo.

Hoje mais que nunca devemos abordar estas imagens? Qual é para si o melhor tratamento a dar-lhes?
Devemos abordar as imagens assim como outros documentos e fontes para melhor compreender os temas que estamos a tratar. As imagens não são neutras. Devem ser olhadas e estudadas no seu contexto, perceber quem as fez, quando, qual o objetivo, relacioná-las com outras imagens, por aí fora. E investigar, estudar...

Como poderemos abordar o nosso passado?
Com curiosidade, disponibilidade e rigor, de forma crítica, utilizando os métodos mais adequados.

Pessoalmente, quais os seus sentimentos para com estas imagens? O que elas a fazem sentir enquanto portuguesa?
Parti para este filme com muita curiosidade e disponibilidade para aprender. As imagens são muito diferentes e diversas. Por isso não posso dizer que haja um sentimento comum relativo a elas. Enquanto portuguesa, sinto que temos de olhar para o nosso passado, estudá-lo, refletir sobre ele, dar uma grande volta na educação. Esta volta implica atuar desde cedo nas escolas, da melhor forma possível, construindo manuais e materiais de apoio que sejam adequados, etc. Há um imenso trabalho a ser feito.

TRAILER "VISÕES DO IMPÉRIO".

Para o investigador Afonso Ramos, as imagens de atrocidades têm como propósito o despolitizar das discussões à volta delas, são catapultas diretas às nossas emoções e conduzem a sentimentos primários. Mas sentimos que hoje, com o facilitismo e banalização da fotografia, além das redes sociais, que essas atrocidades visuais parecem trivialidades. Como é que a nossa sociedade se comporta perante isso?
“Vivemos debaixo de uma chuva ininterrupta de imagens; os mais poderosos media não fazem senão transformar o mundo em imagens e multiplicá-lo através de uma fantasmagoria de jogos de espelhos: imagens que em grande parte estão privadas da necessidade interna que deveria caracterizar toda a imagem... Grande parte desta nuvem de imagens dissolve-se imediatamente, tal como os sonhos que não deixam marcas na memória; mas não se dissolve uma sensação de estranheza e mal-estar.”
[O jornalista e escritor italiano Italo] Calvino escreveu estas palavras em 1985, preparando as "Charles Eliot Norton Poetry Lectures" a convite da Universidade de Harvard. Na lição sobre a Rapidez, adverte para o perigo de se estar a reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogénea, chamando a atenção para o excesso de imagens que nos rodeia. Esta epidemia pestífera atinge a humanidade, nivela a expressão individual, dilui significados, reduzindo tudo a fórmulas mais genéricas, anónimas e abstratas. E alerta para a necessidade de evitar que a memória seja submersa por camadas sucessivas de imagens que se acumulam como num depósito de lixo e onde cada vez mais é difícil distinguir a nossa experiência direta do resto que nos é dado ver.

No calor das "Fakes News" e das ferramentas cada vez mais acessíveis para manipulação visual, acredita que a imagem conserva o seu valor?
Volto a socorrer-me de Calvino para lhe responder: "Não me interessa aqui interrogar-me se as origens desta epidemia se devem procurar na política, na ideologia, na uniformidade burocrática, na homogeneização dos mass-media, na difusão académica da cultura média. O que me interessa são as possibilidades de salvação". E que salvação pode ser esta? Para Calvino, esta possibilidade está contida na necessidade interna que deve caracterizar toda a imagem. E isto implica um permanente questionamento sobre as imagens.

Novos projetos? Permanecerá neste território?
Continuarei ligada às questões da memória e à sua reverberação no presente, refletindo e trabalhando sobre os ecos que estas fontes nos trazem.