Continua a decorrer no Espaço Nimas, em Lisboa, o ciclo "O 'Roman Porno' da Nikkatsu [1971-2016]', que junta as cópias digitais restauradas de cinco filmes do “porno romântico” saídos daquele estúdio japonês na década de 1970 e outros tantos de 2016 que replicaram o formato.
O "Roman Porno" nasceu da necessidade de enfrentar a queda abrupta da afluência de público japonês às salas: o estúdio Nikkatsu avançou para filmes de baixo-orçamento e de duração que não ultrapassasse a hora e meia (para que fosse exibido em "sessões duplas") que invocavam sexo “semiexplícito” numa altura em que o país estava dominado por uma forte censura e era explicitamente proibida a exibição de qualquer órgão genital.
Isto levou vários realizadores a exercitar o engenho criativo, ao mesmo tempo que faziam evidentes referências e presunções cinematográficas, e focavam diversos temas tabus ou de cariz político-social.
O impacto foi tal que, em 2016, para celebrar o 45º aniversário, cinco realizadores modernos foram desafiados a replicar os moldes aplicados nesses tempos áureos.
Após a primeira parte entre 18 e 23 de junho, o ciclo prossegue com "Noites Felinas em Shinjuku", de 1972 (dias 25 e 28 de junho às 19h00, dia 30 às 21h30) e "O Alvorecer das Felinas", de 2016 (dia 26 às 19h00, dia 29 às 21h30 e dia 1 de julho às 19h00).
"Noites Felinas em Shinjuku": sexo e banho a pedido do freguês
As noites escaldantes ocultadas pela ferocidade do quotidiano dos hedonistas, empresários e yakuzas disfarçados povoam a segunda longa-metragem de Noboru Tanaka (1937-2006), realizador que se estreou sob o selo da Nikkatsu com “Kaben no shizuku” em 1972 e por lá andou até se converter num dos importantes nomes do movimento do "Roman Porno".
Com as “Noites Felinas em Shinjuku” (Mesunekotachi no Yoru, 1972), a inspiração é um dos clássicos do cinema nipónico, “A Rua da Vergonha” (Kenji Mizoguchi, 1956), onde nos era dado um retrato de época da mais antiga profissão do Mundo.
Atualizado e contextualizado no espírito algo libertino dos anos 70, Tanaka reproduz a cumplicidade de prostitutas que se dignam a exercitar a profissão sob o disfarce de “banhos turcos” (de forma a contornar a lei anti-prostituição), negócio movimentado no bairro Shinjuku por todo o tipo de homens, muitos deles ansiosos por escapar das rotinas carrasqueiras dos matrimónios e dos seus percursos profissionais.
Por aqui encontramos Masako (Tomoko Katsura), que vive uma relação ainda por identificar com o seu vizinho fura-vidas Honda (Ken Yoshizawa), sendo que este lhe propõe que tenha sexo com o seu amigo Makoto, um jovem gigolo que nunca tivera relação alguma com mulher que se veja.
Nasce aqui uma espécie de triângulo amoroso, sem as ditas arestas reconhecíveis, que irá culminar numa viragem sexual ao som de cantos gregorianos a explorar territórios não-binários da sexualidade de cada um. Digamos que se descobre que as mulheres têm algo de gato dentro delas, independentes, matreiras e nunca devidamente domesticadas, enquanto os homens, meramente ridículos do debaixo das suas propositadas capas de masculinidade (ou como, no caso de Makoto, sensibilidade à flor-da-pele), abrem portas para um universo, ainda que secreto, da homossexualidade da altura em Tóquio.
Este é um daqueles filmes em que o “roman porno” se joga a favor de um retrato social (notamos como o Japão está cada vez mais ocidentalizado), cuidado sem nunca dissipar a sua vertente lasciva de entretenimento para massas. Mas também é um objeto profundamente cinematográfico que prevalece numa comunhão de referência e ideias abstratas tanto de fora de de dentro do país.
Da mesma maneira que se cita o americano “A Janela Indiscreta” (Alfred Hitchcock, 1954), com um sabor de procrastinação artística e intelectual por parte de um assumido voyeurismo do fura-vidas Honda, também integra uma crítica à contemporânea cultura japonesa dos "pink films" (produções de conteúdo sexual de orçamento ainda mais baixo, normalmente de consumo interior), que aprecem aqui como uma tentativa falhada de excitar Makoto, enquanto Masako reativa os seus sentidos num forçado e perpétuo ato de masturbação (tudo isto sob a musicalidade deliciosamente dessincronizada de Kôichi Sakata).
"O Alvorecer das Felinas": gatas de madrugada em telhado de zinco quente
Na homenagem dos 45 anos do “roman porno”, Kazuya Shiraishi transcreve as experiências felinas de Noboru Tanaka com um tributo modernizado e vincado num realismo encenado (a câmara é o mais nervoso dos voyeuristas ou "stalkers").
Aqui o bairro é outro: saímos de Shinjuku e entramos em Ikebukuro, também em Tóquio, acompanhando de “mão dada” três “raparigas de programa”, cada uma delas com os seus dilemas pessoais que diluem com a sua profissão de encomenda.
Ao contrário do original de 1972, a narrativa procura uma igualdade no tratamento do trio em vez de afunilar numa só protagonista, mesmo que seja uma demanda parcial.
Acima de um filme que atribui positivismo ou negativismo à prostituição, é uma janela entreaberta para um submundo de prazeres, alguns deles alicerçados aos ensinamentos do Marquês de Sade, que desejam encontrar a legitimidade na sensibilidade dos seus praticantes em vez de estagnarem como pecaminoso desejo a merecer nada mais que a obscuridade.
A par do “Noites Felinas em Shinjuku”, este “O Alvorecer das Felinas” é uma obra de múltiplas saídas, descrições e encruzilhadas.
Se falamos anteriormente do sadomasoquismo como espetáculo de cabaret, há aqui outras visões que de certa forma dialogam com o Japão que ultrapassou o período exposto por Tanaka, mas que ainda vive na sua sombra de globalização resistente.
Por isso, é impossível não mencionar o regresso do ator Ken Yoshizawa, o Honda oriundo de Shinjuku, que em Ikebukuro é somente um viúvo que se deseja ligar com a falecida mulher através da sua prostituta (Michié, vista em “Silêncio”, de Martin Scorsese, e no censurado episódio de "Masters of Horrors" assinado por Takashi Miike).
Fora do objeto de estudo de “O Alvorecer das Felinas” (o sexo e a sua relevância no aceleramento social), Kazuya Shiraishi compõe uma obra que, como tantas outras que parecem surgir como “cogumelos” na atual indústria cinematográfica nipónica, esboçam uma metrópole acorrentada à sua permanente solidão e isolamento.
Ou seja, antes dos confinamentos impostos pela crise pandémica da COVID-19, os japoneses já enfrentavam a distância com a mais requisitada das normalidades.
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