Há alguns anos a realizadora Cláudia Varejão teve a curiosidade despertada por um poema sobre mulheres no Japão que viviam do que apanhavam no fundo do mar.

Passados alguns anos, a cineasta conseguiu deslocar-se ao Oriente para descobrir, e filmar, uma prática milenar que subverteu as regras de uma sociedade fortemente patriarcal através de uma aventura no fundo dos oceanos.

O resultado foi “Ama-San”, Prémio de Melhor Filme da Competição Nacional no DocLisboa e com várias menções especiais em festivais internacionais, que estreou esta semana em Portugal.

O SAPO Mag conversou com a realizadora sobre a experiência.

A ideia para o projeto surgiu de uma leitura de um poema de Sónia Baptista. Entre a ideia e a concretização, como ocorreu a montagem da produção e a sua ida para o Japão fazer o filme?
Em 2013 fui pela primeira vez ao Japão com uma bolsa da Fundação Oriente com o propósito de fazer um levantamento aprofundado desta prática milenar. Durante um mês visitei algumas vilas piscatórias onde as Amas ainda mergulham e documentei toda a viagem em fotografia. Dessa viagem, mais tarde, resultou uma exposição e a edição de um livro de autor. Foi também durante essa primeira visita que descobri Wagu e as mulheres que mais tarde viriam a ser as protagonistas do meu filme.
Depois, durante um ano, juntamente com a Terratreme e após receber um primeiro financiamento do Instituto do Cinema, tracei a segunda viagem para o filme. Contactámos um estrutura de produção no Japão que nos pudesse auxiliar durante a rodagem e, em Maio de 2014, regressei com os meus dois cúmplices de viagem, a Aya Koretzky [assistente de realização] e o Takashi Sugimoto [diretor de som]. Foi graças a esta equipa de ouro, cúmplice e sensível, que foi possível dar segurança a estas mulheres com que filmamos. Sobretudo, o facto de ser apoiada diariamente durante a rodagem por pessoas que falavam japonês, trouxe mais agilidade ao meu trabalho em campo.

“Ama-San” é um filme que retrata a intimidade de três mulheres japonesas. Sem falar a língua, como foi o processo de entrada neste universo específico? Como elas receberam a ideia de um filme sobre elas?
As Amas, desde logo, sentiram muita curiosidade pela minha motivação para as filmar. Diziam que era um trabalho comum no contexto em que cresceram e não entendiam o que me levava a mim, vinda de tão longe, a interessar-me por elas. E nesse sentido, esta curiosidade mútua, faz-nos encontrar neste filme, nesta viagem. E depois o cinema é feito de conquista permanente de confiança, entre realizador e personagens - e vice-versa -, sejam elas ficcionadas ou reais. Essa conquista foi-se fazendo ao longo do tempo que vivemos juntas aquele período. Um processo de sedução e entrega permanente. Tive também muita sorte. O cinema está cheio de sorte e azares. Muita coisa que transcende as vontades. Lidamos com a imprevisibilidade da vida.
A língua, curiosamente, nunca se revelou num problema. Talvez até pelo contrário. O facto de não falar japonês obrigou-me a explorar zonas talvez mais sensoriais. Estive atenta a outros códigos de comunicação. Foi um exercício novo e muito enriquecedor para mim. Ao olhar as imagens do filme, às vezes penso que se falasse japonês a relação com elas teria sido diferente, mais comunicativa certamente. E talvez isso fizesse com que elas, ao falarem comigo enquanto as filmava, não atingissem esta forma de estar tão esquecida da minha presença - e da câmara - que sentimos ao ver filme.

Já afirmou que a sua ideia “não era um registo etnográfico” e que “não esperou que a vida acontecesse”. Na mesma linha, de uns anos para cá fala-se muito em “docuficção” ou “ficção do real” – que está presente em todos os festivais de cinema. Por que acha que essa tendência ganhou tanta importância?
O ser humano procura o real desde sempre. Procuramos reconhecer-nos nos gestos e nas emoções dos outros. Para nos sentirmos menos sós, talvez. Essa procura já é um instinto antigo. Mas, pelo menos no meu trabalho, procuro pouco definir as fronteiras senão perco a liberdade. E ser livre já é um caminho difícil e, ao mesmo tempo, o que mais se deseja no cinema e na arte em geral.

Em termos de conteúdo, referiu que a ação destas mulheres representou historicamente um desafio à sociedade patriarcal. Como foi esse processo?
A figura da mulher em toda a história do Japão apresentou-se sempre subjugada à imagem do homem. Exemplo disso, uma imagem para todos acessível é a figura da gueixa. A mulher frágil, dependente, submissa é, para nós, o estereotipo mais conhecido. As Amas, ao longo de séculos, têm conquistado um papel que se coloca ao lado dos homens de uma forma mais paritária. São mulheres fortes, independentes, com trabalho próprio, que viajam de mota entre a casa e a doca, que muitas vezes foram a única fonte de rendimento da família. Sobretudo, elas quebraram a herança das suas mães, que muitos gestos tiveram de conter em nome da tradição. As Amas são uma exceção no Japão e arrisco dizer que um exemplo singular universalmente.

Também há uma oposição natural entre o Japão ultratecnológico e uma atividade artesanal condenada há poucos quilómetros de Osaka...
O Japão - e a vida - é feito de opostos. O yin e o yang.

Trailer.

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