Dois realizadores iranianos disseram que foram proibidos de viajar até ao Festival de Cinema de Berlim para a estreia do seu novo filme na sexta-feira, 16 de fevereiro, por quebrarem um dos maiores tabus de seu país: mostrar uma mulher a procurar uma “vida normal”.

A partir de Teerão, a capital do Irão, Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha disseram à France-Presse que sabiam que estavam a brincar com o fogo com "My Favorite Cake", um dos 20 filmes que disputam o prémio principal, o Urso de Ouro.

No entanto, a repressão no outono passado foi um choque.

“Eles invadiram a casa do nosso montador e levaram todos os discos rígidos e computadores do projeto”, disse Sanaeeha, de 43 anos, numa ligação por vídeo, chamando os últimos meses do “período mais stressante das nossas vidas”.

“Depois, quando queríamos sair de Teerão para ir a Paris terminar a pós-produção, levaram os nossos passaportes no aeroporto”, informou.

Moghadam, de 52 anos, disse que o seu crime foi, com o filme, "cruzar tantas linhas vermelhas que foram proibidas no Irão durante 45 anos".

“É sobre a mulher a viver a sua vida, que quer ter uma vida normal, o que é proibido às mulheres no Irão”, esclareceu.

Decotes profundos

Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha no festival de Berlim a 18 de junho de 2021

A história agridoce mostra Mahin, de 70 anos, uma enfermeira reformada interpretada pela aclamada jornalista cultural Lily Farhadpour.

Passados 30 anos de solidão após a morte do marido, Mahin encontra um homem que a atrai enquanto os dois jantam sozinhos num restaurante para reformados.

Ao saber que o homem, Faramarz, é motorista de táxi, ela reserva uma viagem com ele e corajosamente senta-se ao lado dele no banco do passageiro.

O par estabelece um relacionamento amigável e depressa recorda a sua juventude mais permissiva – antes da Revolução Islâmica de 1979 – quando beber, dançar e “decotes profundos” faziam parte da vida da cidade.

Mahin convida Faramarz para a sua casa e, esquivando-se dos olhares indiscretos dos seus vizinhos, tira o seu hijab, serve duas taças altas de vinho e resgata os seus adorados CDs "antigos".

“Mostrar uma mulher sem o hijab é proibido. Mas a maioria das mulheres, mesmo as religiosas, não usa o hijab em casa”, disse Moghadam.

"Beber álcool, dançar ou encontrar um parceiro - tudo acontece no Irão, mas dentro dos muros porque é proibido lá fora. Queríamos dedicar-nos à realidade e mostrá-la", contou.

Arriscar tudo

As cenas marcam “uma novidade para o cinema iraniano”, disse a realizadora, erguendo um “espelho” para um modo de vida que muitos ainda desejam.

Sanaeeha observou que o caso de Mahsa Amini, a jovem iraniana-curda cuja morte sob custódia gerou meses de protestos antigovernamentais, ocorreu enquanto o filme já estava em pré-produção.

“Ficámos deprimidos com a situação que está a acontecer no nosso país”, diz.

"Mas conversámos com toda a equipa e explicámos o que estamos a fazer neste filme - é sobre mulheres, é sobre a vida e é sobre a liberdade. Portanto, era nosso dever terminar este filme", nota.

Numa cena angustiante, Mahin confronta agentes da Polícia da Moralidade que prendem jovens mulheres por não cobrirem adequadamente os cabelos - o mesmo crime que colocou Amini na mira.

“Vocês eram capazes de a matar por causa de alguns fios de cabelo”, grita a personagem.

A história de amor de Mahin e Faramarz no final da vida parece revolucionária à medida que eles escapam das restrições da sua sociedade profundamente conservadora - pelo menos por uma noite.

“Queríamos contar uma história mais profunda sobre a vida, sobre aproveitar o momento”, disse Moghadam.

O festival de cinema de Berlim, que há muito defende os encurralados realizadores iranianos, instou as autoridades a permitirem a viagem dos cineastas. Como já é habitual, deixará dois lugares vazios para eles na sessão de estreia.

O filme anterior de Moghadam e Sanaeeha, "O Perdão", um drama sobre a pena de morte, estreou na Berlinale de 2021, como o evento é conhecido.

Eles disseram que foi proibido desde então no Irão, mas está disponível para ser visto em plataformas europeias e norte-americanas.

“Com a internet, não se pode censurar a arte, portanto o filme será lançado” no país e no exterior, diz Sanaeeh.

No entanto, o que está em jogo para os cineastas independentes continua a ser assustador.

“As punições são tão grandes”, disse Moghadam.

"É preciso arriscar a sua carreira, os seus rendimentos, tudo", concluiu.