A HISTÓRIA: As nossas vidas são a soma das nossas escolhas.

"Missão: Impossível - O Ajuste de Contas Final": nos cinemas desde 22 de maio.


Crítica: Manuel São Bento
(Aprovado no Rotten Tomatoes. Membro de associações como OFCS, IFSC, OFTA. Veja mais no portfolio).

Existem sagas que nos acompanham por toda uma vida cinéfila, que moldam os nossos gostos e influenciam o modo como experienciamos a arte do cinema. Pessoalmente, "Missão: Impossível" é uma dessas sagas. Desde o suspense elegante de Brian De Palma até à espectacularidade insana de Christopher McQuarrie, todos os filmes têm sido uma constante fonte de adrenalina, inovação e respeito absoluto pelo poder do cinema de ação.

"Missão: Impossível - O Ajuste de Contas Final" é a tão aguardada conclusão da saga protagonizada por Tom Cruise, tornando-se naturalmente numa das obras mais antecipadas do ano. A expectativa era imensa, não só por se tratar do suposto capítulo final, mas também pela promessa de encerrar uma das sagas mais consistentes da história do género.

O oitavo filme é novamente realizado por McQuarrie - o arquiteto da era mais recente de "Missão: Impossível" - e coescrito com Erik Jendresen, voltando a colocar Ethan Hunt (Cruise) no centro de uma crise global onde o passado, o presente e o futuro colidem com consequências catastróficas. Seguindo a narrativa deixada em aberto por "Ajuste de Contas: Parte Um", a ameaça mantém-se em torno de uma Inteligência Artificial descontrolada, cujas ramificações éticas e existenciais abrem portas a algumas das temáticas mais ousadas de toda a saga.

Contando com uma equipa de luxo ao seu lado (Ving Rhames, Simon Pegg, Hayley Atwell, Pom Klementieff, entre outros), Cruise, evidentemente, regressa com a mesma entrega física e emocional que já se tornou sinónimo destes 'blockbusters '. Desde 1996 que tem vindo a redefinir o que significa ser uma estrela de ação e é impossível não começar por reconhecer, mais uma vez, a sua entrega absoluta a este mundo. Em "O Ajuste de Contas Final", volta a executar acrobacias de fazer parar o coração, com um nível de compromisso com o realismo que, mesmo ao fim de décadas, continua a ser desconcertante.

A segunda metade do filme é um espetáculo contínuo de sequências absolutamente insanas que nunca podem ser normalizadas. É verdade que existe uma sensação de familiaridade que pode levar a uma certa desilusão de não assistir a algo totalmente novo, mas McQuarrie e companhia mantêm a fasquia elevada. A tensão, o ritmo e o entretenimento puro encontram-se em todos os planos, sempre presentes, sempre a desafiar os limites do que é possível capturar com a câmara.

Neste campo técnico, a cinematografia de Fraser Taggart é, como esperado, uma verdadeira conquista técnica. A forma como a câmara se movimenta, como se insere nas cenas de ação mais caóticas com uma clareza visual impressionante, merece aplausos de pé. É graças a esta linguagem visual coesa e envolvente que se consegue acreditar na impossibilidade do que se vê. Taggart oferece um ambiente que realça tanto os momentos mais íntimos como os mais explosivos e fá-lo com uma firmeza e confiança inspiracionais.

No que toca à banda sonora, Max Aruj e Alfie Godfrey entregam uma das composições mais intensas e emotivas de toda a "Missão: Impossível". O trabalho do duo é herdeiro direto dos anteriores, com temas vibrantes que impulsionam a ação, mas também com variações melódicas que enfatizam o peso emocional da conclusão da saga. Pessoalmente, será uma banda sonora que irei revisitar muitas vezes.

Hayley Atwell, Simon Pegg, Pom Klementieff e Greg Tarzan Davis em "Missão: Impossível - O Ajuste de Contas Final"

Dito isto, no meio de tantos louvores técnicos, o elenco é igualmente um dos pontos fortes. Todos os membros da nova equipa IMF possuem o seu momento de destaque, o que é notável tendo em conta o número crescente de personagens e enredos secundários. Atwell e Klementieff, em particular, continuam a provar ser adições valiosas ao núcleo central: a primeira reforça o coração da obra com a sua performance vulnerável mas determinada, enquanto a atriz francesa brilha numa personagem fisicamente imponente, de poucas palavras mas com grande presença.

Ainda assim, é Rhames quem tem direito às linhas de diálogo mais memoráveis. O seu monólogo sobre o verdadeiro significado de identidade e a importância das ações ao longo do tempo é, além de comovente, um encapsulamento perfeito da filosofia da saga. Não são os feitos isolados que nos definem, mas sim o conjunto dos nossos atos e intenções. Uma mensagem profundamente humana e inesperadamente emotiva num 'blockbuster' de ação.

Ving Rhames em "Missão: Impossível - O Ajuste de Contas Final"

Aliás, é precisamente a componente temática que eleva "O Ajuste de Contas Final". Ao longo das últimas décadas, Ethan Hunt tem sido uma figura que encarna o sacrifício pessoal em nome do bem coletivo. Rejeitando o heroísmo tradicional, o agente construiu a sua reputação não pela força bruta, mas pela lealdade inabalável e uma teimosia quase suicida de sempre fazer o que é moralmente correto, mesmo quando o mundo à sua volta aparenta colapsar. Este último capítulo da saga põe em causa essa bússola moral: será que Ethan ainda tem liberdade de escolha? Ou tornou-se apenas um peão num sistema maior, tal como o IA que tenta combater?

Obviamente, o antagonista digital é uma metáfora clara para a crescente desumanização das nossas sociedades. A forma como as últimas duas parcelas apresentam a IA - uma entidade que aprende, manipula e redefine verdades para controlar o comportamento humano - espelha as atuais preocupações com algoritmos, redes sociais e a perda de autonomia individual. "Missão: Impossível" explorou inúmeras vezes a dualidade entre controlo e liberdade, mas nunca de forma tão literal e urgente. O que antes era um "simples" jogo de espiões entre governos rivais transforma-se agora numa batalha ideológica pela preservação da humanidade em tempos de automatização.

Tom Cruise e Esai Morales em "Missão: Impossível - O Ajuste de Contas Final"

Outra reflexão poderosa reside na ideia do arrependimento e da responsabilidade intemporal. A constante revisita a momentos passados - através de 'flashbacks', regressos de personagens e referências não-tão-subtis - não é apenas um exercício de nostalgia. É um lembrete de que as ações têm consequências duradouras e que o tempo não apaga as marcas do que foi feito. Ethan, ao confrontar o legado das suas escolhas, torna-se um símbolo trágico de alguém que vive para corrigir erros que talvez nunca tenham salvação. Esta sensação de culpa carregada, transversal à saga, atinge aqui o seu clímax emocional. Não é coincidência que a primeira hora, mais arrastada e repetitiva, se encontre repleta desses fantasmas - é "O Ajuste de Contas Final" a preparar emocionalmente o público para o inevitável impacto da despedida.

Ainda assim, nem tudo funciona com a eficácia desejada. O maior obstáculo é, sem dúvida, a exposição. Todas as outras obras contêm este dispositivo de contar histórias, mas "O Ajuste de Contas Final" enche a sua primeira hora de 'flashbacks', resumos, reinterpretações e referências a eventos e personagens de *todos* os capítulos anteriores. A tentativa de contextualizar o público é mais do que compreensível, especialmente os espectadores mais ocasionais, mas esta necessidade de relembrar o passado acaba por prejudicar o ritmo narrativo, demorando demasiado tempo a arrancar verdadeiramente e ficando preso num ciclo de explicações e construção de contexto que, apesar de útil, poderia ter sido tratado com mais economia e subtileza.

Charles Parnell, Mark Gatiss, Janet McTeer, Angela Bassett, Holt McCallany e Nick Offerman em "Missão: Impossível - O Ajuste de Contas Final"

A estrutura narrativa também se ressente dessa vontade de abarcar tudo. Existe um sentimento de despedida iminente que motiva os criadores a revisitarem quase todos os grandes momentos e figuras da saga –-e sim, há regressos agradavelmente surpreendentes - mas esta nostalgia estrutural afeta negativamente o fluxo natural da narrativa. O tempo gasto a olhar para trás atrasa o avanço do que devia ser um final focado no agora e no que está em jogo.

No fundo, "O Ajuste de Contas Final" é um tributo à saga que construiu um legado de excelência no cinema de ação. E não se pode deixar cair no esquecimento todos os nomes que a tornaram possível. Brian De Palma lançou as bases com um 'thriller' psicológico elegante; John Woo elevou o estilismo visual; J.J. Abrams trouxe emoção e tensão; Brad Bird redefiniu o espetáculo puro; e Christopher McQuarrie consolidou tudo isto numa visão coerente e apaixonada. "Missão: Impossível" sempre foi muito mais do que a soma das suas partes e tal deve-se a décadas de dedicação de equipas de duplos, técnicos, realizadores, argumentistas e, claro, do inigualável Tom Cruise.

Conclusão

"Missão: Impossível - O Ajuste de Contas Final" pode não ser a conclusão épica que se desejava ou o melhor filme da saga (reveja-se o sexto, "Missão: Impossível - Fallout", de 2018), mas é, sem sombra de dúvida, uma despedida digna e emocionalmente satisfatória. Apesar de alguns problemas de ritmo e excesso de exposição, Christopher McQuarrie e Tom Cruise triunfam pelo espetáculo audiovisual, pela força temática e pelo compromisso inigualável com o legado que representam. Se for mesmo o fim (algo sempre duvidoso em Hollywood), então que despedida bonita e cheia de coração. Obrigado, Ethan Hunt. E obrigado a todos os que tornaram esta missão possível.