O Esquema Fenício
A HISTÓRIA: Zsa-zsa Korda é um magnata europeu envolvido nas indústrias de armamento e aviação cuja vida é marcada por acontecimentos inusitados — incluindo a sobrevivência a seis acidentes aéreos e a paternidade de dez filhos. A sua filha, Liesel é uma freira inesperadamente atraída para os negócios da família. Com eles segue Bjorn Lun, o tutor de Liesel, numa jornada que os leva de capitais europeias a enclaves secretos no Médio Oriente, onde a linha entre lealdade e traição se torna perigosamente ténue. Enquanto o misterioso plano conhecido como "O Esquema Fenício" ameaça desestabilizar o equilíbrio de poder global, os protagonistas enfrentam uma rede de corrupção que se estende até aos mais altos níveis diplomáticos, empresariais e familiares.
"O Esquema Fenício": nos cinemas desde 29 de maio.
Crítica: Manuel São Bento
(Aprovado no Rotten Tomatoes. Membro de associações como OFCS, IFSC, OFTA. Veja mais no portfolio).
Wes Anderson é, sem dúvida, um dos cineastas mais autorais e inconfundíveis do cinema contemporâneo. Desde a simetria meticulosa dos seus enquadramentos, passando pelas paletas cromáticas cuidadosamente selecionadas até à tonalidade quase melancólica do seu humor irónico, tudo no seu estilo grita o seu nome.
Obras como "Moonrise Kingdom" (2012) ou "Grand Budapest Hotel" (2014) definiram uma linguagem visual e narrativa que inspirou (e saturou) muitos imitadores, mas nenhum conseguiu replicar com a mesma precisão. Ainda que a sua filmografia recente - como "Asteroid City" (2023) ou "Crónicas de França" (2021) - me tenha deixado algo indiferente, mantenho intacta a curiosidade de assistir a cada novo projeto. "O Esquema Fenício" não muda em nada o estilo, mas encontra um equilíbrio mais acessível entre a sua estética elaborada e uma narrativa simples.
"O Esquema Fenício" conta então a história de Zsa-zsa Korda (Benicio del Toro), um magnata europeu das indústrias de armamento e aviação, cuja vida já viu de tudo: desde sobreviver a meia dúzia de acidentes de avião até ser pai de dez filhos com diferentes mães. A sua filha Liesl (Mia Threapleton), uma freira que vive em clausura, é inesperadamente atraída para os negócios sombrios do pai. A acompanhá-los está Bjørn (Michael Cera), tutor de Liesl e fiel conselheiro, que embarca com ambos numa viagem improvável por capitais europeias e zonas secretas no Médio Oriente. À medida que o enigmático plano que dá título ao filme ganha forma e ameaça destabilizar o equilíbrio geopolítico, os três protagonistas veem-se enredados numa teia de corrupção e jogos de poder que atravessam fronteiras diplomáticas, empresariais… e familiares.
Apesar de manter os típicos monólogos extensos, diálogos estilizados e expressões faciais impassíveis, Anderson entrega em "O Esquema Fenício" uma história mais direta que o habitual com um objetivo mais claro: a reconciliação entre pai e filha. Esta âncora dramática confere uma camada temática palpável que nem sempre se encontra tão presente nas obras passadas. Korda, inicialmente apresentado como mais uma das criações emocionalmente distantes do realizador, vai revelando camadas de remorso, culpa e desejo de redenção, todas exploradas com um humor seco, mas eficaz, que torna o seu arco mais envolvente.

As interpretações, como seria de esperar, são todas de alto nível. Benicio del Toro (óscar por "Traffic"), com o seu carisma imponente, oferece uma performance controlada mas cheia de subtexto, conseguindo transmitir a gradual transformação interior da sua personagem com subtileza. Threapleton ("Jovens Rebeldes") revela-se como uma autêntica surpresa, dominando os densos diálogos com uma naturalidade impressionante e demonstrando uma excelente química com del Toro. Cera ("Barbie"), por sua vez, encaixa perfeitamente no universo de Anderson, combinando o seu habitual ar desajeitado com um 'timing' cómico irrepreensível. A dinâmica entre os três protagonistas é um dos pilares mais fortes do filme, com um elenco de luxo de apoio com, entre outros, Benedict Cumberbatch, Rupert Friend, Richard Ayoade, Tom Hanks, Scarlett Johansson, Bryan Cranston, Jeffrey Wright, Bill Murray, Riz Ahmed, Willem Dafoe e Hope Davis.
Visualmente, "O Esquema Fenício" é tudo aquilo que se espera de uma colaboração entre Wes Anderson e o seu produtor artístico de longa data Adam Stockhausen. A direção de arte é, mais uma vez, extraordinária: cenários perfeitamente simétricos, cores pastel combinadas com tons vibrantes, ambientes teatrais que criam uma sensação de mundo encapsulado... Cada plano parece uma ilustração de um livro de histórias antigas, algo que o cineasta sempre procurou e continua a executar com mestria. A música de Alexandre Desplat, outro colaborador frequente de Anderson, mantém o tom excêntrico e lúdico, funcionando quase como um narrador paralelo que acentua tanto os momentos cómicos como os dramáticos. É uma banda sonora que sabe quando se destacar e quando recuar.

Outro destaque técnico digno de nota é a presença de Bruno Delbonnel ("Darkest Hour") como diretor de fotografia. Apesar de ser uma estreia na colaboração com o cineasta, ele adapta-se como uma luva ao estilo, mantendo os movimentos laterais, os cortes rápidos entre planos fixos e a iluminação plana que acentua a artificialidade encantadora dos cenários.
A nível temático, "O Esquema Fenício" aborda questões de reconciliação familiar, ego e identidade comunitária. A personagem de Korda representa o típico indivíduo que, após uma vida de decisões egocêntricas e motivações superficiais - fama, dinheiro, prestígio - se depara com o vazio emocional que essas conquistas deixaram para trás. O reencontro com a filha, num contexto de intriga internacional e espionagem empresarial, acaba por servir de metáfora para um retorno aos valores esquecidos. Liesl, por outro lado, simboliza uma geração que exige autenticidade e responsabilidade emocional, mesmo perante os erros de quem a criou.
Dito isto, a decisão de manter a expressividade dos personagens num registo contido e quase indiferente poderá continuar a afastar alguns espectadores. O distanciamento emocional é, sem dúvida, uma marca autoral de Anderson, mas, quando a comédia não atinge os seus alvos - como aconteceu em partes de "Crónicas de França" - essa frieza pode ser interpretada como desinteresse. No entanto, em "O Esquema Fenício", a base emocional é suficientemente forte para contrabalançar esse efeito. A gradual aproximação entre Korda e Liesl é desenvolvida com pequenos gestos e olhares subtis que, aliados ao humor sarcástico, geram momentos genuinamente bonitos.
Finalmente, o argumento, embora recheado dos floreios verbais caraterísticos do cineasta, encontra mais foco narrativo do que nos seus últimos trabalhos. Não existe excesso de enredos nem personagens descartáveis: a história avança com fluidez e o final oferece uma nota emocionalmente satisfatória, reforçada por uma última cena coreografada que ecoa o crescimento de cada personagem.

Conclusão
"O Esquema Fenício" é mais um exemplo claro da visão singular de Wes Anderson, que continua a criar espaço para todos os departamentos brilharem - da direção de arte exuberante de Adam Stockhausen à banda sonora espirituosa de Alexandre Desplat, passando pela cinematografia impecavelmente alinhada de Bruno Delbonnel. No entanto, é na exploração temática que se atinge um ponto de equilíbrio raro: ao retratar a transformação de um homem consumido pela vaidade e ambição numa figura paterna vulnerável e redimida, o realizador oferece uma reflexão genuína sobre arrependimento, reconexão familiar e sacrifício pessoal. As interpretações subtis, mas carregadas de intenção de Benicio del Toro, Mia Threapleton e Michael Cera, reforçam esse núcleo emocional, conferindo humanidade a um mundo meticulosamente artificial.
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