Ferrari
A HISTÓRIA: Durante o verão de 1957, o ex-piloto de automóveis, Enzo Ferrari, está em crise. A empresa que construiu 10 anos antes com a sua esposa Laura, enfrenta a falência. O seu turbulento casamento é ameaçado pela perda de um filho e o reconhecimento legal de outro. Na tentativa de garantir a sua sobrevivência, Enzo Ferrari aposta tudo numa corrida: a icónica Mille Miglia - 1000 milhas por Itália.
"Ferrari": nos cinemas a partir de 4 de janeiro.
Crítica: Francisco Quintas
No que toca a biografias de personalidades históricas de língua não-inglesa, Hollywood mantém o antiquado hábito de escalar atores britânicos ou americanos para bater texto com um qualquer sotaque distante, mesmo que as personagens não recorram ao inglês uma única vez no seu núcleo.
Da lista de encarnações dramáticas americanas de figuras estrangeiras, a nacionalidade mais sofrida será, discutivelmente, a italiana. Não só é desafiante para um ator assumir sem estranheza um sotaque carregado como aquele, como pode ser ainda mais difícil evitar maneirismos de discurso ou a linguagem corporal de uma caricatura. O risco de ofender parte do público é recorrente.
Portanto, é algo surpreendente a insistência de Michael Mann, realizador consagrado, em dirigir Adam Driver no papel de Enzo Ferrari, o fundador da icónica marca automóvel, com um sotaque distrativo, suavizado pela menção de vocábulos como “capiche” e “Mille Miglia”. Mas – justiça seja feita – nada que se compare ao exagero de “Casa Gucci” (2021), em que Ridley Scott sequestrou o talento do ator de “Marriage Story” (2019), e de todo o elenco, numa entrega de personagens saídas de um mau 'sketch' de comédia.
Aceitando, e superando, esta realidade de estrangeiros a dialogar num canhestro inglês, torna-se fácil reconhecer a solidez artística e técnica de uma obra como “Ferrari”. Para começar, o filme cumpre um exímio trabalho de casa ao dispensar contextualizações acerca das origens da empresa ou sequer da carreira de piloto da personagem principal.
É certo que um título como este atrai fãs esfomeados da Fórmula 1, que poderão contar os minutos à espera das corridas. A espera vale mais que a pena. As sequências de corrida de “Ferrari” constam, sem dúvida, no topo da filmografia de Michael Mann e poderão vingar entre as melhores da História do Cinema, pela perfeita conjugação dos elementos técnicos: a mudança de escala das vastas montanhas para as lentes embaciadas dos pilotos, os focos de luz avulsos no negrume de planícies desertas, uma mistura de som absolutamente monumental.
Michael Mann, 80 anos, dirige uma equipa com a fugacidade que foge a muitos jovens realizadores. O realismo visceral da maioria dos seus filmes é uma referência para a posteridade da Sétima Arte. Contudo, nenhum deste trabalho sensorial teria tanto vigor se não fosse pontuado nos intervalos de um guião cuidadoso.
Comprovando uma enorme sensibilidade para o desenvolvimento das personagens e das respetivas relações, o realizador de “O Último dos Moicanos” (1992) e “Colateral” (2004) reconhece que “Ferrari” se trata, na verdade, de um drama pesado sobre um homem com o peso do mundo nos ombros, na véspera de um combate contra dragões. Encarregue de salvar uma marca icónica da falência, este Enzo, debaixo de um estoicismo impenetrável e óculos-de-sol, gere as próprias más decisões e uma tragédia pessoal irrecuperável.
O guião de Troy Kennedy Martin, escritor falecido em 2009, é preciso e pragmático, permitindo a Adam Driver cada oportunidade de brilhar em silêncio. Este predador que observa a periferia no centro da mesa é um dos trabalhos de topo de um ator que se supera a cada projeto (apesar do sotaque).
Perto da identidade emocional de “Heat – Cidade sob Pressão” (1995), não havia como Michael Mann subvalorizar a importância das personagens femininas, comandadas pela aura de uma leoa chamada Penélope Cruz.
Pena que esta imponência não se repita em Shailene Woodley, que mal se livra de um registo unidimensional. Ademais, o mesmo pode ser dito sobre a maioria das personagens masculinas. Sente-se que todo o poder do filme foi reservado para Adam Driver, pelo que algumas oportunidades foram perdidas, nomeadamente explorar a relação com o automobilista Alfonso de Portago, atendendo ao infeliz desfecho dos eventos reais.
Desenrolados os últimos créditos, emergidos pela orquestra de Daniel Pemberton, “Ferrari” poderá não constar entre os melhores filmes do ano. Felizmente, a bagagem profissional de um realizador como este confere uma marca de qualidade quase autossuficiente em cada um dos seus trabalhos. Antes um Michael Mann mediano que outros realizadores no seu melhor dia.
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