"High Hopes", o 18º álbum de estúdio de Bruce Springsteen, não traz grandes acréscimos ao universo do cantautor norte-americano mas distingue-se logo pela sua natureza. Depois de vários registos de originais editados na fase mais recente da sua carreira - o anterior, "Wrecking Ball", ainda nem completou dois anos -, o autor de "Born to Run" arranca 2014 com uma revisão de algum do seu catálogo.
No novo disco encontramos versões de terceiros, regravações de canções não incluídas em álbuns anteriores e temas que só tinham passado pelos palcos. A opção é relativamente inesperada para um músico cujos álbuns surgem ancorados em ideias fortes, não sendo necessariamente conceptuais mas partilhando ligações temáticas ao longo do alinhamento. "High Hopes" é, por isso, mais disperso, mesmo que ainda saia francamente a ganhar à manta de retalhos embrulhada em tantos discos de sobras. No livreto do CD, Springsteen confessa ter sentido que estas canções tinham mesmo de ser editadas e, se nem todas contam com sabor a novidade (sobretudo junto dos fãs mais acérrimos), a maioria mantém a urgência que associamos a quem lhes dá voz.
Lyric video de "High Hopes":
O álbum é, de resto, uma oportunidade de juntar a sua voz à de heróis musicais como o cantautor norte-americano Tim Scott McConnell, a banda punk australiana The Saints ou Walter Cichon, vizinho de Nova Jérsia e figura decisiva para a cena rock local antes de desaparecer no Vietname. Este último é homenageado não numa versão mas enquanto personagem na elegia de "The Wall". "Foi a primeira pessoa com quem estive que tinha a mística de uma verdadeira estrela de rock. (...) Ainda toca para mim de vez em quando nos meus sonhos", recorda Springsteen.
Passando dos heróis para as musas, Tom Morello tem a honra de ser a mais recente do Boss. Foi assim que o próprio descreveu o ex-guitarrista dos Rage Against the Machine e Audioslave, agora membro da E Street Band de Springsteen - a substituir a tempo inteiro Steven Van Zandt depois de o ter feito numa digressão. Morello entrou pela porta grande e participa em mais de metade dos temas de "High Hopes", colaboração que nem sempre joga a favor do disco. A guitarra à The Edge na faixa título funciona e ajuda a que a canção seja uma versão mais enérgica e robusta do que o original de Scott McConnell (mais tarde gravado ao lado dos The Havalinas). O tom funky de "Harry's Place" serve a crónica de uma pandilha de gangsters e marialvas regada com algum humor, atmosfera 80s e o saxofone gingão do falecido Clarence Clemons. E se o scratch algo intrusivo de "Heaven's Wall" também ainda se aceita, tendo em conta a celebração gospel de contornos épicos, a guitarrada em crescendo de "The Ghost of Tom Joad" transforma um retrato devastador sobre a perda numa paródia (involuntária e infeliz) aos piores clichés instrumentais do hard rock.
Videoclip de "Dream Baby Dream":
Springsteen e Morello podem ter a canção de protesto a uni-los, mas a voz do herói da classe trabalhadora não convive bem com maneirismos de guitar hero. Ainda assim, estes deslizes são exceções e nem eles nem uma produção e arranjos por vezes anacrónicos - saídos diretamente dos anos 1980 ou 1990 - travam a força e integridade de "High Hopes". Até porque se alguns sons estão datados, disparos como "Don’t you know these days you pay for everything?" (da faixa título) parecem ter ganho maior acutilância com o passar do tempo. "American Skin (41 Shots)" será um exemplo ainda mais óbvio: originalmente inspirado em Amadou Diallo, morto pela polícia de Nova Iorque, em 1999, surge agora numa nova versão como tributo a Trayvon Martin, outro jovem negro desarmado assassinado por um segurança na Florida. "You can get killed just for living in your American Skin", observa Springsteen numa canção que não perdeu atualidade.
Entre os achados de "High Hopes" há momentos como "Down in the Hole", que convoca a família do Boss para os coros e dá especial atenção à voz da sua mulher, Patti Scialfa, num belíssimo cruzamento entre cenografia industrial (moderada) e serenidade folk. Cohen e sobretudo Dylan haveriam de gostar da contenção de "Hunter of the Invisible Game", a contrastar com o choque térmico da noitada de "Just Like Fire Would" (uma versão pouco livre, mas convincente, dos The Saints) ou com o rock de estádio de "Frankie Fell in Love", que Springsteen grita a plenos pulmões ao narrar um encontro entre Einstein e Shakespeare. O hino inspirador de "This Is Your Sword" retoma a influência celta de alguns episódios de "Wrecking Ball" e "Dream Baby Dream" fecha o álbum com uma das canções mais calmas dos Suicide.
Sem ser uma entrada fulminante na discografia de Springsteen, "High Hopes" é um objeto obrigatório para fãs e oferece mais do que o suficiente para poder interessar aos restantes. Apesar da angústia de alguns momentos, o título não engana e a esperança tem quase sempre a última palavra num álbum em que estas contam. E como tem sido regra nos últimos trabalhos do Boss, o timing não podia ser mais apropriado. Ficamos com esperança, pelo menos, para um ano discográfico que não começa nada mal com estas canções.
@Gonçalo Sá
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