“A primavera é a estação do ano em que tudo renasce, em que a natureza se renova e os estabelecimentos prisionais, mais do que uma penitenciária, como eram vistos há uns anos, têm de ser um ponto de renovação e um ponto de partida para algo de novo. Daí ter sido pensado que não havia nada melhor do que um estabelecimento prisional para fazer uma “Primavera”.

As palavras são de Jorge Prendas, responsável pelo serviço educativo da Casa da Música que desde janeiro, como parte de um curso de formação para 24 de animadores musicais, tem estado na cadeia feminina de Santa Cruz do Bispo a recriar uma das obras mais importantes do século XX, a “Sagração da Primavera”, de Igor Stravinski. E o prazer com que se entregavam ao ensaio, na quinta-feira, as 26 reclusas que no sábado, ao fim da tarde, atuarão na Casa da Música parece dar-lhe razão. “Uma das coisas importantes do projeto aqui em Santa Cruz é o entusiasmo e a energia que as mulheres têm, numa paixão que é de satisfação e isso afeta-nos a todos”, diz Tim Steiner, o responsável artístico pelo projeto.

“Aqui dentro ninguém vive sem música”, afirma Vera, detida na cadeia de Matosinhos há mais de seis anos, em concordância com Jorge Prendas que acredita que “cada ser humano é um ser musical por natureza”. “Uma das coisas que primeiro perguntamos quando uma pessoa aqui entra é se têm rádio. Se não têm emprestamos, até que mandem alguma coisa de fora”, explica Vera. Diz ela que “dentro” ouve-se de tudo, mas muito pouco fado (”só algumas ciganas”). A canção da saudade pode ter muito poucas adeptas, mas é esse sentimento, numa mistura agridoce com a satisfação de quebrar a rotina com o projeto da Casa da Música, que se pressente nas palavras das reclusas.

“Conviver com pessoas fora deste mundo é muito motivador” explica Sofia, outra reclusa, e Vera acrescenta que “a aproximação é tão grande com as pessoas” que ela, que já tinha participado noutro projeto do serviço educativo, sabe agora que vai “sentir muito mais falta” quando no salão de festas da cadeia deixar de ser animado por estes ensaios.

O sentimento é partilhado pelos formadores que, segundo Jorge Prendas, estão ali para perceber como “a partir de uma peça tão grande como a ‘Sagração da Primavera’ se pode ir buscar elementos para um trabalho de comunidade no interior de uma cadeia”. “Estabelecemos amizade com elas e se calhar nunca mais as vou ver”, diz um dos formadores, que garante ter conhecido ali “vidas difíceis”, mas que tendo sido muito “bem recebidos” a experiência “é muito gratificante”.

Questionado sobre o resultado da “experiência”, Tim Steiner diz que será “um caos altamente estruturado, que é a forma como a ‘Sagração da Primavera’ soou, na altura, à audiência de Stravinski”.

Jorge Prendas explica que, “tal como Stravinski, que utilizou dezenas de melodias tradicionais russas”, as reclusas foram convidadas a escolher músicas tradicionais portuguesas que, depois, foram integrando com partes da obra do compositor russo, utilizando algumas das suas “técnicas de composição como a sobreposição de dois acordes criando uma politonalidade”.

O trabalho final vai poder ser apresentado integrado no novo ciclo a “Consagração da Primavera”, num concerto, pelas 18:00 horas na sala Suggia, com a segunda parte assegurada pela Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. A atuação vai exigir “uma operação logística que tem de ser montada de forma rigorosa, pois, estando em regime fechado, são pessoas que têm de ter vigilância continua”, diz o diretor da prisão Paulo Carvalho. “Não podemos perder nenhuma destas senhoras, nem no trajeto, nem no espetáculo”, afirma com um sorriso.

@Lusa