“Este exercício é a finalização de um processo que começou em maio, com alguns intervalos por greves” e outras dificuldades, nomeadamente o “muito tempo” que a equipa teve de esperar para entrar naquele estabelecimento prisional, em Alcabideche, no concelho de Cascais, disse à agência Lusa a atriz e encenadora Flávia Gusmão, no final da apresentação da peça, na última semana de novembro.

O convite para dirigir a formação, ministrada pelo Teatro Experimental de Cascais (TEC) em colaboração com a autarquia local, coincidiu com a altura em que Flávia Gusmão encenava a mesma peça do dramaturgo irlandês, para a companhia fundada por Carlos Avilez.

Apesar de a representação deste texto de Beckett, que se centra “no tempo de espera” - em meio prisional não ser uma novidade, muita gente o fez, incluindo o próprio autor -, Flávia Gusmão afirmou concordar “absolutamente” com a premissa.

No mundo atual, “não esperamos muito, entretemo-nos a olhar para ecrãs, não temos muito a noção do que é estar à espera de alguma coisa, arranjamos maneira de nos alienarmos, de nos entretermos, de fazer muita coisa ao mesmo tempo. E aqui não é o caso. Aqui, está-se, efetivamente, à espera”, frisou.

Cláudio Megie, de 30 anos, o ator mais velho do elenco e recluso desde os 24 anos, vai mesmo mais longe, afirmando à Lusa: “O tempo é uma coisa que foi feita pelo homem, nós é que inventámos o tempo”.

“Em vez de tempo podia ser calor, ou outra coisa, mas escolhemos tempo”, afirmou, alternando as respostas entre português e inglês, e sublinhando: “Tempo é uma coisa muito vasta, é maior que o universo, é maior que tudo, porque o tempo nunca acaba, atrás de um zero tem sempre outro zero”.

Cláudio Megie remeteu para uma das suas falas na peça: “Cinco minutos, para nós, é muito valioso”, comparando com as “pessoas que estão em liberdade e à vontade, e nem se preocupam com um minuto ou cinco minutos perdidos”.

Megie, com três filhos, é o autor de todas as letras e ‘beats’ dos temas entre o rap e o afro-beat que se interpretam na peça, tendo o músico Xullaji ajudado “a meter a entrada certa”.

Xullaji, habitual colaborador de Flávia Gusmão em formações comunitárias e também responsável pelo desenho de som da peça no TEC, foi o responsável pela sonoplastia do exercício apresentado na capela do estabelecimento prisional, que evidencia sinais de degradação, nomeadamente infiltrações e rachas nas paredes, e frágeis condições acústicas.

Um vaso com uma árvore despida de folhas, uns megafones, dois bancos corridos e um microfone compunham a cenografia onde cada ator ia vestindo as várias personagens da peça.

Didi, Gogo, Pozzo, Lucky e o Menino são as cinco personagens da peça, todas à espera de Godot, que não conhecem. Os seis atores vestiram as personagens, tendo todos personificado Lucky e o Menino.

Para os reclusos, a peça foi “uma libertação”, “um momento de alegria” e de ilusão do tempo de espera até à saída.

A encenadora realçou o papel do teatro para que uma pessoa se repense e repense o mundo, considerando este grupo “muito forte, com grande disponibilidade e inesquecível”.

“Gostei muito deste contacto e espero efetivamente que continue, porque também não acredito no ‘toca e foge’. Este tipo de projetos deve ser em longa duração, nem sequer em curta ou média”, argumentou.

Tal como Flávia Gusmão, o diretor artístico do TEC, o cenógrafo e figurinista Fernando Alvarez, defende a longa duração deste tipo de projetos.

“Não pode ser ‘ai, vamos ali fazer uma gracinha com os reclusos’, não é nada disso. É um trabalho importantíssimo”, frisou, lembrando tratar-se de pessoas que irão sair da reclusão “e quantas mais ferramentas tiverem para a vida futura e, mesmo enquanto estão privadas da liberdade, melhor para elas”.

Para Alvarez, este exercício “é um capítulo que se encerrou”, mostrando-se esperançado “em abrir um segundo capítulo”.

Alvarez defendeu que “estes projetos deveriam ser apoiados naturalmente, em todo o país, sempre”.

“Não podemos julgar os outros de ânimo leve, porque também nós cometemos erros, ninguém está livre de os cometer. Não se pode ser moralista neste tipo de projetos porque há ainda um longo caminho a percorrer”.