Já há muitos anos que a região da península de Setúbal é vista com uma das principais parteiras da música rock nacional. Dentro desta gigantesca redoma, onde podemos encontrar bandas dos tempos atuais e outras mais antigas, os UHF erguem-se como um dos grandes exemplos – talvez o maior – da fertilidade dos solos que se acercam da margem sul do rio Tejo. Os Um Zero Azul, trio oriundo da zona do Pinhal Novo, são um dos mais recentes resultados dessa prolífera colheita. Vencedores do prémio “melhor banda do concelho” no concurso de Música Moderna de Palmela, sendo esta a primeira vez que uma banda do concelho foi à final, os Um Zero Azul lançaram o seu disco de estreia no dia 4 de julho deste ano e encontram-se de momento em fase de promoção do trabalho. Foi na esplanada do espaço Sol e Pesca, situado no Cais do Sodré – um local por muitas vezes referenciado quando de música se trata –, que o Palco Principal esteve à conversa com o coletivo.
Como todas as boas histórias, esta também tem um início, e é Kapa de Freitas, vocalista, guitarrista e mentor do projeto, que trata de desfolhar as primeiras páginas deste livro. “Apesar de ter tido bandas de originais, e de mais recentemente ter tocado em grupos de covers, nunca deixei de escrever e compor músicas no meu computador. Sempre escrevi em vários sentidos e direções, nunca houve um fio condutor. A dada altura, depois de compor muito, comecei a encontrar essa linha guia e a achar que fazia sentido transformar o projeto numa banda. Foi nessa altura que falei com o Eurico Carvalho, com o qual já tinha tido um projeto na adolescência, e com o David Cerqueira”.
Na altura do convite, Eurico de Carvalho, baixista da banda, encontrava-se completamente inativo. “Há cerca de dois ou três anos que não tocava”, relembra. David Sequeira, o responsável máximo pela secção rítmica, tocava numa banda de originais e noutra de covers. A vitória no Concurso de Música Moderna de Palmela levou o coletivo a participar em mais um par de iniciativas do género. Numa delas conhecem Paula Homem, uma das diretoras da Valentim de Carvalho, e assim surge a oportunidade de gravar um disco.
O nome da banda, que tanto tem de curioso como de peculiar, tem como origem uma analogia à linguagem dos computadores, como o esclarece o coletivo: "nasce do facto das canções durante muito tempo existirem numa plataforma digital, ou seja, da associação ao código binário que normalmente nos remete - tomando como exemplo o filme 'Matrix' - a caracteres verdes. E como nós temos a pretensão de sermos diferentes, decidimos associar essa ideia a uma outra cor, ao azul".
O imaginário sonoro dos Um Zero Azul consegue visitar universos tão distintos como a electrónica e o rock, como o explicam as palavras de Kapa de Freitas: "Acho que as influências deste disco são aquelas de quando eu comecei a tocar. A questão da electrónica começa a aparecer pelo facto de eu estar a fazer as coisas sozinho, de ter algumas limitações, e de ter as máquinas como bengala da minha criação. Permitiu-me explorar e sobrepor instrumentos que, de uma forma orgânica, nunca iria conseguir". E acrescenta: "Eu comecei a tocar guitarra, curiosamente, por influência do Eurico. Recordo-me de um episódio em que fomos os dois em visita de estudo e eu passei o tempo o todo a pedir-lhe para ir tocando os temas que me ia lembrando, o que me despertou a curiosidade de começar também a tocar. A certa altura pedi umas guitarras emprestadas e comecei a aprender alguns acordes e a tocar algumas malhas... Nessa altura o que ouvíamos era muito à base de Metallica, Pantera, Anthrax... Algumas coisas de Pearl Jam e Nirvana...".
"Quem Não Quer Ver" é o single de apresentação do álbum de estreia dos Um Zero Azul e conta com a participação de Tim (Xutos e Pontapés). É David Sequeira que escava na memória as razões que os levaram a procurar a colaboração do baixista e vocalista da banda mais significativa de sempre do rock português. "A ideia partiu da minha esposa, que sugeriu que o tema era capaz de ficar engraçado com a participação do Tim. Eu coloquei a hipótese à banda e todos achámos que seria uma mais valia para a música. Como o produtor do disco, para além do Kapa [de Freitas], foi o João Martins, houve alguma facilidade no agilizar do processo. O Tim gostou do tema que lhe enviámos e aceitou gravar connosco". Eurico de Carvalho pega na palavra e acrescenta: "Estivemos juntos em estúdio. Foi tudo feito com um elevado nível de profissionalismo. O Tim chegou, cumprimentou a malta do género 'olá, eu sou o Tim', mostrou-nos aquilo que tinha feito em casa, gravou, despediu-se, e foi-se embora (risos). Foi fixe, até porque ele estava doente nessa altura e não se cortou à colaboração. Podia simplesmente ter dito que não estava em condições para gravar, mas foi um porreiro".
O single chegou a integrar a banda sonora de uma conhecida novela de televisão, mas o facto de ter uma letra com uma forte mensagem social levou a que o tema nunca chegasse a ser reproduzido na íntegra. "A maior parte das vezes em que a música passava era cortada antes de chegar à letra. Ficava só o instrumental", afirma o vocalista do coletivo. Uma ideia reforçada por David Sequeira: "Às vezes sinto que a nossa música não abrange mais público porque é muito pesada para umas coisas e demasiado comercial para outras. Sentimos muitas dificuldades com as rádios nacionais. Nós conseguimos ter o single com o Tim três semanas na Rádio Comercial e na Antena 3, mas sempre com pouca expressão. Obviamente que isso depois também dificulta a consolidação de uma agenda, porque, se a música não passa, as pessoas não te conhecem; se não te conhecem, há pouca gente nos concertos, e por aí a diante...".
Ao longo dos onze temas que constituem o disco homónimo dos Um Zero Azul, há uma clara preocupação com as letras e a mensagem transmitida. "Eu acho que essa preocupação tem origem naquilo que nós vivemos e que vemos todos os dias à nossa volta", constata Kapa de Freitas, continuando: "eu cresci num bairro social e assisti a muitas coisas no dia-a-dia, às quais seria impossível ficar alheio. Mas não é preciso cresceres num bairro social para veres esse tipo de coisas... Não nos conseguimos dissociar do mundo em que vivemos". No entanto, os Um Zero Azul não querem ser vistos como uns "revolucionários reivindicativos", como clarificam as palavras do baterista do coletivo: "é uma coisa que surge de forma natural. Eu acho que as pessoas ficam surpreendidas quando ouvem o disco. Se calhar não estão à espera que este álbum seja assim tão forte. Então quando vêem o espetáculo ao vivo, ainda mais surpreendidas ficam. Uma das coisas que nos tem impressionado bastante é as pessoas dizerem que gostam do disco, mas que ainda gostam mais da experiência ao vivo".
Relativamente à dinâmica ao vivo, o coletivo garante que a sua música "é para ser tocada com intensidade", algo que não conseguiu atingir nos mais recentes concertos que deu em várias fnacs espalhadas pelo país. "Foi onde tivemos mais dificuldades", confessa Kapa de Freitas, "não pudemos tocar as coisas como elas são e fomos obrigados a baixar as dinâmicas da banda. E é complicado, principalmente a nível de bateria. Não tem propriamente um volume que se possa aumentar ou diminuir... Mais recentemente houve um concerto no Santiago Alquimista que, apesar de não ter tido muita gente a assistir, já nos permitiu libertar toda a energia necessária em palco, assim como nos concertos que demos nas festas de Pinhal Novo e Alcochete".
O álbum foi lançado a 4 de Julho deste ano, mas Kapa de Freitas, enquanto mentor do projeto, já planeia os próximos passos desta aventura. "Apesar de nós acharmos que o álbum ainda não foi todo explorado na sua plenitude, já estamos a pensar num disco novo, mas ainda não temos datas previstas para o lançamento. Brevemente há de sair um vídeo do tema "Olhar Cinza", gravado ao vivo num concerto no Pinhal Novo. Ainda estamos a decidir se vai ser esse o vídeo oficial do tema, ou se vamos acabar por fazer outro. Já estava planeado, mas entretanto aconteceram outras coisas e, como já passou muito tempo desde a altura em que o single saiu, não sei se faz sentido estar a fazer o vídeo agora... Em termos de concertos, podemos adiantar que em dezembro e janeiro vamos regressar às Fnacs e que estamos a alinhavar qualquer coisa para os lados de Leiria".
Manuel Rodrigues
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