Um homem europeu e uma mulher, que pode não ser árabe, cruzam-se algures, num país do norte de África. Ambos têm visões e expectativas diferentes desse encontro, e ambos traduzem a improbabilidade de reconhecer o outro e de conseguir coabitar com o que os distingue.

“Retrato de uma mulher árabe olhando o mar” pode ser uma metáfora da relação entre os dois lados do Mediterrâneo, o europeu e o árabe (que só é árabe, porque o europeu assim o vê). O homem aproxima-se da mulher, como se aproxima de todas as mulheres, confiante no seu poder; a mulher aproxima-se dele na esperança de uma fuga, de chegar a um lugar melhor do que aquele que habita. Nenhum logra os seus intentos. Mas o que os distingue altera-lhes o destino e confronta quem os vê.

“As personagens abrem uma luta que é verbal, em primeiro lugar”, sublinham diferenças “entre culturas e visões, começando com a distância linguística”, lê-se na plataforma Fabulamundi, de dramaturgias europeias, sobre a obra que deu ao dramaturgo italiano o Prémio Riccione de teatro, em 2013.

“O texto procura essa tensão entre palavra e imagem, entre o discurso claro e o ritmo suspenso da poesia, para salvaguardar não apenas o que a palavra diz, mas também o que ela não diz – não só o que já está escrito, mas também o que o espectador pode imaginar”, prossegue.

A ação estende-se ao longo de uma série de encontros que envolvem o homem, que se apodera do que quer e parte, a mulher, que fica, e os irmãos desta, conjugando os preconceitos que cada um alimenta, e que se traduzem num ‘corpo-a-corpo’ de palavras, que se afastam cada vez mais entre si – e que os afastam cada vez mais uns dos outros –, até ao impossível.

Este é um texto “sobre a incapacidade de aceitar e superar as diferenças culturais que dividem dois mundos cada vez mais próximos e tão distantes”, lê-se na Fabulamindi. “Uma reflexão imprevisível sobre migrações e confrontos culturais”.

É, por isso, “um texto sobre os erros que se cometem quando se pensa saber algo, sem se querer realmente chegar ao outro, sem se reconhecer o seu valor”.

O abismo da relação entre homem e mulher, é o abismo do Mediterrâneo, no acesso à Europa, mas também o abismo entre os que reclamam o relato da História, entre vencedores e vencidos.

É criado pela incapacidade de se identificar com o outro, com o estranho, de integrar diferentes perspetivas, diferentes modos de vida, também presente em “Sweet home Europe”, peça anterior de Davide Carnevali, que o Teatro Nacional D. Maria II pôs em cena no passado mês de março, numa encenação de João Pedro Mamede (com o continente sintomaticamente representado num enorme e impossível campo de pregos).

Carnevali nasceu em Milão, há 37 anos, e foi o primeiro autor italiano convidado para o Stückemarkt dos encontros de teatro de Berlim (Theatertreffen), na Alemanha, que o premiaram pelas “Variações sobre o modelo de Kraepelin”, reunião de três personagens ameaçadas pela doença de Alzheimer (“o campo semântico dos coelhos estufados”).

A obra foi igualmente distinguida em Itália (prémio Marisa Fabbri), em França (prémio Journée des Auteurs), e levou Carnevali aos principais palcos mundiais, de Buenos Aires a Milão, do Théâtre de la Ville e da Comédie-Française, em Paris, ao Teatro Nacional da Catalunha, em Barcelona.

A primeira parte do seu “Díptico da Europa”, “Sweet Home Europa”, teve estreia em 2012, em Berlim, e continuou um ano depois com “Goodbye Europa. Lost words”.

“Confissões de um presidente que levou o seu país ao limite da crise” (“Confessione di un ex presidente che ha portato il suo paese sull’orlo della crisi”) e “Trans-Siberian Maleducation” são outros projetos com que o dramaturgo continua a pensar a atualidade e os seus protagonistas.

Do autor estão publicados em Portugal “Retrato de mulher árabe que olha o mar” e “Variações Sobre O Modelo De Kraepelin”, textos recém-editados na coleção Livrinhos de Teatro, dos Artistas Unidos, com os Livros Cotovia, e “Sweet Home Europa”, com chancela Bicho do Mato/Teatro Nacional D. Maria II.

“Retrato de uma mulher árabe olhando o mar” é encenada por Jorge Silva Melo, com cenário (telas) do pintor Pedro Chorão e interpretações de Inês Pereira, João Meireles, Nuno Gonçalo Rodrigues e Margarida Correia. A cenografia é de José Manuel Rocha, os figurinos, de Batista.

A peça vai ficar em cena a partir de hoje, até 8 de dezembro, no Teatro da Politécnica, em Lisboa, com sessões às terças e quartas-feiras, às 19:00, às quintas e sextas-feiras, às 21:00, e, aos sábados, às 16:00 e às 21:00.