"Assim que o livro foi publicado, duas queixas contra Kamel Daoud e sua mulher, Aicha Dehdouh, a psiquiatra que tratou a vítima", Saâda Arbane, foram apresentadas em Oran, na Argélia, disse à AFP a advogada Fatima Benbraham.

Saâda Arbane, sobrevivente de um massacre durante a guerra civil na Argélia, na década de 1990, acusa o escritor e sua mulher de terem revelado a sua história sem o seu consentimento.

"A primeira queixa foi apresentada em nome da Organização Nacional das Vítimas do Terrorismo" e "a segunda em nome da vítima", disse Fatima Benbraham à AFP.

A advogada garantiu à agência francesa que a apresentação das queixas remonta a agosto, "alguns dias depois da publicação do livro", e meses antes da atribuição do Prémio Goncourt ao romance, que aconteceu este mês, no passado dia 04.

"Não queríamos falar [sobre o caso] para que não se dissesse que queríamos perturbar a nomeação do autor para o prémio", disse a advogada à AFP.

Segundo Fatima Benbraham, as queixas dizem respeito "à violação do sigilo médico, uma vez que a psiquiatra [casada com Daoud] entregou todo o processo da sua paciente ao marido, assim como à difamação das vítimas do terrorismo e à violação da lei de reconciliação nacional", que proíbe qualquer publicação sobre a "década negra" da guerra civil na Argélia, entre 1992 e 2002, que fez 200 mil mortos, segundo números oficiais.

Na passada sexta-feira, Saâda Arbane disse ao canal francês One TV que a história do romance "Houris" é a sua.

Sobrevivente de uma tentativa de degolação por islamitas armados, Arbane disse ter reconhecido elementos da sua vida no livro em causa: "A cânula [que lhe permite respirar e falar], as cicatrizes, as tatuagens", até o seu "salão de cabeleireiro".

Nessa entrevista, Arbane enumerou outros elementos pessoais presentes no livro, como a relação com a mãe e o seu desejo de abortar, assegurando que os confidenciou à psiquiatra Aicha Dehdouh, em 2015, durante a terapia. Dehdouh entretanto casou-se com Kamel Daoud.

Segundo Arbane, o escritor convidou-a há três anos para um café em sua casa e, nessa ocasião, perguntou-lhe se era possível contar a sua história num romance, o que disse ter recusado.

Kamel Daoud não respondeu a estas acusações, mas a sua editora francesa, a casa Gallimard, contestou, na segunda-feira, as "violentas campanhas difamatórias orquestradas [contra o escritor] por certos meios de comunicação próximos de um regime [argelino] cuja natureza ninguém ignora".

"Se Houris se inspirou em acontecimentos trágicos ocorridos na Argélia durante a guerra civil dos anos 1990, o seu enredo, as suas personagens e a sua heroína são puramente fictícios", disse Gallimard.

Na Argélia, o escritor e colunista do Le Point é visto como alguém que traiu a causa palestiniana para fazer carreira em França, entendendo-se o Prémio Goncourt como uma recompensa política e não literária, escreve a AFP.

Em "Houris", o escritor e jornalista franco-argelino de 54 anos coloca-se na pele de Aube, uma jovem grávida que conta à filha por nascer o massacre da sua família por islamitas que tentaram cortar-lhe a garganta, deixando-a desfigurada e muda.

Crítico do islamismo radical, o que lhe valeu uma 'fatwa' no seu país de origem (Argélia), Kamel Daoud já tinha ganhado em 2015 o Prémio Goncourt de Melhor Primeiro Romance, com "Meursault, contra-investigação" (editado em Portugal pela Teodolito), obra que escreveu como resposta a "O estrangeiro", de Albert Camus.